Quarto Caminho ou quatro funções psicológicas?

Neste artigo, continuamos a explorar as ideias e teorias de dois grandes pensadores do século XX: Carl Gustav Jung e Georges Ivanovich Gurdjieff. Você pode ler o primeiro artigo aqui. Jung, um psiquiatra e psicólogo suíço, é mais conhecido por seus conceitos de arquétipos, inconsciente coletivo e tipologia psicológica. Gurdjieff, por outro lado, foi um místico e mestre espiritual russo-armênio, cujos ensinamentos tratavam principalmente do desenvolvimento do ser humano e da busca pela consciência superior. Embora suas teorias e abordagens possam parecer distintas, há pontos de convergência e divergência que valem a pena investigar. Nesta análise comparativa, continuamos a identificar e discutir as semelhanças e diferenças entre as propostas de Jung e Gurdjieff, oferecendo uma perspectiva única sobre as contribuições desses dois gigantes intelectuais no campo do desenvolvimento humano e da espiritualidade.

As quatro funções psicológicas na tradição Junguiana

Jung propõe em seu sistema de tipologia psicológica que a personalidade obedece a quatro funções psíquicas: pensamento, sentimento, sensação e intuição. A evolução da alma passa então por um processo em que uma função dominante ganhe o suporte das duas outras funções auxiliares para depois conseguir integrar a função reprimida. Assim, um ser quaternário nasce que está além do ego. Portanto, essa dissolução do ego em uma transformação estabelece o seu caminho da evolução.

Cabe aqui salientar que Jung propõe em seu modelo da psique humana que o ego é um intermediador da consciência para o inconsciente. Dessa forma, o ego comunica com o self (a consciência expandida) e com o inconsciente (pessoal e coletivo). É nesse processo de transformação que o ego conquista sua individuação. Em outras palavras, sua capacidade de ser no coletivo e no todo enquanto mantém a sua individualidade consciente.

MBTI, Quati e testes de personalidade

O Indicador de Tipo Myers-Briggs (MBTI) como o Questionário de Avaliação Tipol[ogica (Quati) são baseados nas ideias de Jung sobre os modelos de personalidade descrevendo de maneira precisa os gostos individuais, viés cognitivos, motivações e tendências de comportamento que cada função da personalidade dominante impõe ao indivíduo inconsciente de si.

É importante ressaltar que, segundo as teorias de Jung, a função de personalidade dominante pode operar inconscientemente, levando o indivíduo a confundi-la com sua persona (máscara que usamos para nos apresentar ao mundo) ou com seu próprio senso de self (identidade pessoal). Isso pode acontecer porque as pessoas tendem a se identificar fortemente com a função dominante, o que pode mascarar ou obscurecer outras facetas de sua personalidade.

Nesse sentido, a investigação do modelo de personalidade de Jung contém muitas similaridades com as proposições de Gurdjieff a cerca de nossa psique. A começar que o ser humano inconsciente age mecanicamente e se ilude quanto a sua verdadeira liberdade. Assim, sua consciência se encontra soterrada e somente se manifesta em lampejos que por muitas vezes criam mais confusões e alucinações do que esclarecimentos.

A tradição psicológica de Gurdjieff

Diferentemente de Jung, Gurdjieff não enfatiza o conceito de ego da mesma forma. Para ele, o que chamamos de ‘ego’ é na verdade uma ilusão baseada na identificação com uma série de ‘eus’ diferentes que se manifestam em resposta a diferentes situações e na identidade com o corpo. De acordo com Gurdjieff, estamos constantemente sendo influenciados por esses diferentes ‘eus’, que pensam e sentem de maneira distinta dependendo das circunstâncias.

No entanto, esses diversos pensamentos estão contidos em um único corpo. Assim, há uma noção equivocada de que ser uma entidade única em seu próprio corpo implica ser um único ‘eu’ coeso em pensamentos e emoções. Isso seria verdade se não fosse a capacidade do ser humano de negar o que lhe desagrada e afirmar o que lhe agrada. Além disso, Gurdjieff acredita que a incoerência dos vários ‘eus’ não pode ser facilmente observada devido à existência de amortecedores psicológicos que suavizam o choque psíquico dessa constante fragmentação da psique humana.

Portanto, Gurdjieff nega a existência de um ‘eu’ unificado em favor de uma multiplicidade de ‘eus’ que se manifestam sob a ilusão de uma coerência inexistente. No entanto, Gurdjieff poderia concordar com Jung que tal ‘eu’ unificado com o self só existe para aqueles que realizaram seu próprio trabalho interior.

Modelo dos Tipos Psicológicos ou Eneagrama da personalidade?

É notável a contribuição dos descritivos das funções psicológicas de Jung. Não é difícil perceber nossa tendência em seguir o padrão comportamental da função dominante. Assim como é notável observar que tal padrão comportamental é similar em diferentes pessoas com o mesmo viés. Contudo, observações semelhantes podem ser feitas ao estudar o eneagrama da personalidade.

Embora o eneagrama da personalidade não tenha sido desenvolvido por Gurdjieff, ele segue muito de seu legado quanto à divisão da psique em três centros principais. Gurdjieff utilizou o eneagrama como um símbolo e uma ferramenta em seus ensinamentos; no entanto, o eneagrama da personalidade é uma abordagem separada e distinta, desenvolvida mais tarde por Oscar Ichazo e Claudio Naranjo. Portanto, é importante não atribuir o eneagrama da personalidade diretamente a Gurdjieff.

Assim, para Gurdjieff, os três centros – intelectual, emocional e físico (ou motor) – são os núcleos fundamentais da psique humana, relacionados respectivamente ao pensamento, sentimento e sensação. Ao contrário de Jung, Gurdjieff não considera a intuição como um centro separado de inteligência. Essa pode ser uma das principais diferenças entre os modelos de personalidade propostos por ambos.

A intuição para Gurdjieff

Na teoria de Gurdjieff, a intuição é abordada principalmente como parte do desenvolvimento interior e da evolução espiritual. Embora sua abordagem não seja tão sistemática quanto a de Jung, a intuição desempenha um papel significativo em seus ensinamentos. Porém a intuição é algo distinto da personalidade e causa grande confusão as pessoas que a acessam sem o desenvolvimento de seus centros superiores. Assim, a intuição é fruto de uma série de fatores que incluem:

  1. Conexão com os Centros Superiores: Gurdjieff sugere que existem centros superiores (intelectual superior e emocional superior) que, quando desenvolvidos e acessados, podem fornecer uma intuição mais profunda e clareza em comparação com os centros inferiores (intelectual, emocional e motor-instintivo). A intuição, neste contexto, pode ser vista como um resultado do funcionamento dos centros superiores.
  2. Consciência Despertada: Gurdjieff enfatiza a importância do despertar da consciência e do trabalho interior para alcançar um estado mais elevado de percepção e compreensão. A intuição pode ser interpretada como uma capacidade inerente que se torna mais acessível à medida que a pessoa se torna mais consciente de si mesma e do mundo ao seu redor.
  3. Auto-observação e Autoconhecimento: A prática da auto-observação e do autoconhecimento é fundamental nos ensinamentos de Gurdjieff. À medida que um indivíduo se torna mais consciente de seus pensamentos, emoções e comportamentos, pode desenvolver uma intuição mais apurada sobre si mesmo e suas ações.
  4. Conexão com o Divino: Gurdjieff também sugere que a intuição pode ser uma expressão da conexão de um indivíduo com o divino ou uma inteligência cósmica. Nesse sentido, a intuição pode ser vista como um guia espiritual interno que ajuda a pessoa a navegar em sua jornada de desenvolvimento e crescimento pessoal.

Centros de inteligência ou funções da personalidade?

Vale notar que ambos irão concordar sobre a necessidade de se buscar harmonia em nossas ações. Ou seja, para Gurdjieff, sempre é necessário trabalhar a integração dos três centros para se abrir aos centros superiores. Ou no caso de Jung, é necessário trabalhar o equilíbrio das quatro funções da personalidade. Assim, a maior divergência entre esses dois grandes mestres está em seus métodos em se obter a tão sonhada Iluminação da espiritualidade.

Apesar de terem coexistidos por um tempo na mesma época, não houve registro de diálogos entre eles sobre suas ideias. Portanto, cabe a quem os estuda buscar traçar esses paralelos. Então, o que vem a seguir tem muito do caráter pessoal de minha interpretação sobre esses dois grandes gênios da humanidade. Porém, pode ajudar a você decidir quando buscar um ou outro em seus estudos.

Jung:

Prós: era um escritor prolixo. Hábil em elaborar textos longos. Deixou uma obra escrita e uma tradição estruturada. Contudo, formou discípulos que formaram discípulos e institutos com seu nome e de seus seguidores. A abordagem junguiana tem sido amplamente utilizada em psicoterapia e aconselhamento, ajudando inúmeras pessoas a alcançarem maior autoconhecimento e bem-estar emocional.

Contras: a abordagem de Jung pode ser considerada mais teórica e intelectual do que prática. Embora Jung enfatize a importância da integração das funções da personalidade, ele não fornece um método claro ou detalhado para alcançar essa integração. Além disso, a linguagem e os conceitos usados ​​por Jung podem ser complexos e de difícil acesso para muitos.

Gurdjieff:

Prós: desenvolveu uma abordagem bastante prática em relação ao desenvolvimento psicológico e espiritual da qual chamou o “Trabalho”. Tal abordagem inclui exercícios físicos, mentais e emocionais para ajudar os indivíduos a alcançar a autoconsciência e a transformação pessoal. Além disso, Gurdjieff enfatizou a importância da observação direta e da experiência pessoal, em vez de se basear apenas em teorias ou conceitos intelectuais.

Contras: a abordagem de Gurdjieff é menos estruturada e formalizada do que a de Jung. Embora Gurdjieff tenha deixado uma série de escritos, muitos de seus ensinamentos foram transmitidos oralmente, o que pode levar a interpretações variadas e divergentes. Além disso, o “Trabalho” pode ser considerado exigente e difícil de seguir, especialmente para aqueles que não estão acostumados a práticas espirituais ou de desenvolvimento pessoal.

Quem ganha essa batalha cósmica?

Em conclusão, tanto Jung quanto Gurdjieff ofereceram contribuições valiosas para a compreensão do desenvolvimento humano e da espiritualidade. Embora suas abordagens e teorias possam diferir em muitos aspectos, ambos enfatizam a importância da integração das várias funções ou centros do ser humano e a busca pela autoconsciência e transformação pessoal.

Os interessados ​​em explorar suas ideias podem encontrar benefícios em estudar ambos os sistemas e aplicar os aspectos que ressoam com suas próprias experiências e objetivos de crescimento pessoal. A complementaridade entre as perspectivas de Jung e Gurdjieff pode oferecer uma riqueza de insights e recursos para aqueles que buscam expandir sua consciência e alcançar uma vida mais equilibrada e autêntica.

O veredicto final

Para aqueles que desejam aprofundar seu conhecimento e prática das abordagens de Jung e Gurdjieff, é importante lembrar que a verdadeira transformação pessoal e espiritual vem do compromisso contínuo e do trabalho interior. Ambos os sistemas requerem tempo, esforço e dedicação para se obter resultados significativos e duradouros. Acima de tudo, não espere grandes atalhos ou fórmulas mágicas. Também, não há fórmula única ou caminho certo para o crescimento pessoal e espiritual. Cada pessoa deve encontrar sua própria jornada, baseada em suas experiências, necessidades e inclinações.

Como estudioso das obras de Jung e Gurdjieff, é possível aproveitar as oportunidades de aprendizado e crescimento que surgem ao longo do caminho. Claro, reconhecendo que cada sistema oferece pontos fortes e fracos. Ao mesmo tempo, é importante estar ciente das limitações de qualquer abordagem. Permanecer aberto a outras perspectivas e tradições que possam enriquecer ainda mais sua compreensão do ser humano e da espiritualidade.

A jornada do autoconhecimento e desenvolvimento pessoal é um processo contínuo e multifacetado. As ideias e práticas de Jung e Gurdjieff podem ser uma parte valiosa desse caminho. Ao abordar suas obras com curiosidade, respeito e discernimento, é possível aprender com esses dois grandes pensadores. Assim, criar seu próprio caminho único em direção a uma vida mais integrada, consciente e plena.

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