Liberdade ainda que me tardia

O desejo de liberdade é fundamental na busca pelo desenvolvimento da psique humana. No entanto, esse desejo está conectado a duas pontas. A primeira é a vontade de ser autêntico, de não trair a si mesmo. A segunda é a vontade de ser livre para fazer o que se quer, sem responsabilidade sobre os próprios atos. Essa dualidade pode criar uma armadilha para aqueles que buscam o desenvolvimento espiritual. É preciso questionar o que se busca: crescer o egoísmo ou a alma.

Liberdade, uma fantasia ou realidade?

A liberdade é um conceito que pode parecer uma fantasia, mas é uma realidade que pode ser alcançada. As escolas de desenvolvimento espiritual, filosófico ou religioso oferecem dois tipos de instruções para alcançar a liberdade. A primeira é a liberdade interior, que está ligada à como uma pessoa lida com suas paixões e desejos. A segunda é a liberdade exterior, que se refere aos condicionamentos impostos pela educação, cultura e família.

No entanto, é importante entender que não se pode alcançar a liberdade se acredita que já a possui. Muitas vezes, as pessoas buscam o caminho espiritual como uma forma de reforçar suas capacidades de “realizar” e “obter sucesso”, tornando-a uma busca pelo poder e prestígio. Por outro lado, algumas pessoas buscam o caminho espiritual por compreender que estão presas a um condicionamento mecânico que as impedem de perceber a realidade objetiva.

É preciso ter cuidado com a visão maniqueísta de nós mesmos. Independentemente das razões que nos levam a buscar o caminho espiritual, uma parte de nós buscará crescer e desenvolver a alma, enquanto outra parte buscará satisfazer o egoísmo. É por isso que é importante trabalhar em grupo e com o auxílio de pessoas que já trilharam esse caminho.

Quebrando as ilusões sobre sua liberdade

É necessário compreender a ilusão que temos sobre a “quantidade” e “qualidade” de liberdade que verdadeiramente possuímos. Precisamos encontrar um meio de registrar, medir e comparar se realmente possuímos tanta liberdade no uso de nossas vontades quanto julgamos ter.

A auto-observação é o método mais eficaz para isso, pois não há outra maneira de se conhecer o que se é. Embora receber críticas de outras pessoas possa ser mais preciso, a barreira psíquica do auto-amor e vaidade pode tornar essa abordagem ineficaz. Além disso, as críticas diretas podem reforçar uma cristalização do comportamento em vez de criar uma transformação.

Eventualmente, se uma crítica direta for aceita integralmente por uma pessoa, pode criar uma abertura sem compreensão das raízes do comportamento. Portanto, a auto-observação é o único caminho, mesmo que seja difícil e tenha suas próprias armadilhas.

A auto-observação é a fórmula antiga “conheça a ti mesmo”, que começa com uma observação científica de si. Isso significa ser capaz de observar a si mesmo de maneira neutra e imparcial. É como um cientista que se lança em campo e deve embrenhar em uma mata cheia de perigos e armadilhas. Esse cientista não pode se perder de seus objetivos, e o primeiro objetivo é entender onde está sua liberdade de uso de sua própria vontade e o quanto sua vontade está escrava de seus condicionamentos externos e internos.


Conheça sua liberdade através do seu corpo

O corpo é o elemento mais passivo que temos em nossa psique, mas é também o mais representativo do nosso senso de individualidade e liberdade. Porém, é importante derrubar a crença comum de que não podemos mudar nossas mentes sozinhos ou controlar nossas emoções. Em vez disso, é possível ganhar controle sobre o corpo, mesmo que a mente e as emoções possam resistir e venham a esbravejar.

Gurdjieff se declarava um iogue, não no sentido do atual entendimento comum sobre alguém que pode colocar os pés sobre a cabeça, mas como alguém que pode tomar o controle do próprio corpo e fazê-lo seu aliado. Muitos dos nossos problemas e questões poderiam ser resolvidos ou pelo menos diminuídos por essa simples ação.

Quanto mais tomamos o controle sobre o nosso próprio corpo, mais podemos avançar na possibilidade de afastar a crença comum de que possuímos um único “eu” em controle, especialmente porque esse “eu” é misterioso e mutável. No entanto, tomar o controle do corpo é usá-lo com respeito, sem exageros, pois o nosso corpo é um meio de experimentar a nossa existência e não um fim em si mesmo. O seu fim é tornar-se adubo para a Terra.


A liberdade que não possuímos

Observar o nosso corpo é interessante para compreendermos as limitações que enfrentamos simplesmente por sermos seres humanos. Temos restrições que não podemos superar, e o nosso centro instintivo muitas vezes nos domina e afeta nossa liberdade. No entanto, percebemos rapidamente como é difícil gerenciar nosso próprio corpo, especialmente porque ele está altamente condicionado por nossos pensamentos e emoções. E esses pensamentos e emoções muitas vezes estão estagnados, paralisados em círculos, congelados no tempo.

Podemos facilmente perceber a falta de individualidade em nossos gestos. Essa falta de individualidade reflete a falta de liberdade que muitas vezes enfrentamos, tanto no corpo quanto na mente.

A liberdade nasce quando escolhemos nossas ações

Enquanto estamos presos em nossos condicionamentos, não fazemos nada além de repetir padrões. Isso nos torna mecânicos e impede que vivamos a vida de verdade. Em vez disso, vivemos uma vida ilusória baseada em nossas imaginações, desconectados da realidade objetiva. Ficamos presos a emoções e pensamentos passivos e condicionados. Quando estamos presentes em nosso corpo, até mesmo o ato simples de levantar um copo de água se torna algo novo e fresco. Todas as nossas ações se tornam ativas e voluntárias, e não há mais repetição casual, apenas aplicação da vontade por escolha própria.

O Trabalho nos ensina a nos proteger contra o autoengano, a subjetividade e a mania de introspecção que busca reviver continuamente esse vazio do condicionamento. Não devemos subestimar a influência do ambiente que nos rodeia. Para isso, é necessário estar presente em nosso próprio corpo. Dessa forma, nasce a possibilidade de agir pela própria escolha, fruto de um pensamento ativo sempre fresco no momento presente. Isso é aprender a viver cada segundo de nossa vida.

1 comentário em “Liberdade ainda que me tardia”

  1. Esse texto veio de encontro com algo que eu estava constatando justamente no momento que o li. Até me assustei porque ele me trouxe a resposta da pergunta que eu não conseguia entender sobre atitudes minhas no dia de hoje. Excelente exato como sempre. Obrigada

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