Comer ou ser comido, eis a questão

Se vamos digerir algo é porque comemos algo. Algo nos alimentou. Logo, algo se tornou alimento. Contudo esse algo foi antes de mais nada alimentado por outro. Assim, desde o princípio dos tempos, existe um processo de transformação e transferência das substâncias que vão formando novos corpos. Então, tudo vai ser transformando e aos poucos transmutando.

Mas todo processo de se alimentar representa um certo grau antropofágico. Mesmo um vegetariano está a se alimentar dos mesmos elementos que compõem o seu próprio corpo. Da mesma forma, como seres vivos necessitamos de alimentos que também possuem um certo grau de vida. Não podemos simplesmente comer minerais e tomar banho de luz. Temos de comer certos seres que já absorveram um determinado nível de transformação e transmutação.

Da mesma maneira, nosso corpo físico um dia voltará para a terra e será a comida de outros seres. Do pó viemos e ao pó voltaremos. Contudo, somos feito desse pó. Humanos, da raiz grega húmus. Ou seja, feitos de barro.

do barro viemos e ao barro voltaremos

Todavia, é justamente essa relação entre alimentar e ser alimentado, entre transformação e transmutação que cria uma possibilidade para uma possível imortalidade. Porém, não uma imortalidade de reencarnações que ainda seria apenas ciclos de transformações. Portanto, algo além de uma troca constante de formas. Também não seria uma continuação infinita da mesma forma. O que você é irá morrer sempre. Pode demorar um tempo maior ou menor. Tudo está fadado a dissolução pelo próprio tempo, o implacável Heropass.

Sofia Wellbeloved descreve a seguinte definição para o Grande e Implacável Heropass (Gurdjieff: The key concepts):

Na cosmologia de “Relatos”, a dicotomia do temporal e do eterno se expressa no Raio da Criação como a queda.  O tempo, referido nos Contos como o Heropass, é expulso do Sol Absoluto. Como na criação bíblica quando Adão e Eva são expulsos do Jardim do Éden para um mundo temporal. O resultado é labuta, sofrimento e morte.  Gurdjieff expressa sua versão da relatividade do tempo no capítulo 16 de “Relatos”, onde os seres em uma gota d’água experimentam seu tempo de vida exatamente como nós na Terra. Embora suas vidas em nossa experiência durem apenas alguns segundos. 

Assim, podemos ver que em Relatos o tempo e o eterno não são expressos exclusivamente como conceitos separados, mas o tempo é omitido no eterno (ou seja, pode haver períodos de vida extremamente longos, mas estes não são eternos).  Do ponto de vista da percepção do ser humano, quanto mais superior o mundo, maior o tempo de vida.  A qualidade do mundo interior do homem também afeta sua duração dessa vida: esta diminuiu à medida que a qualidade de seu ser diminuiu. 

O Heropass sozinho não tem fonte e, como o Amor Divino, se mistura com tudo no universo.  Gurdjieff expressa uma ambivalência em relação ao tempo, que, embora expresso como a “doença de amanhã” – é também o que salvará o homem.  O ensino e os escritos de Gurdjieff foram influenciados por interesses contemporâneos em conceitos de tempo pré-modernos e pós-modernos.  Conceitos pré-modernos de tempo foram explorados e compreendidos em relação à mudança dos calendários lunares para os solares e nos épicos gregos arcaicos.  Conceitos modernos de tempo foram destruídos pela teoria da relatividade de Einstein.  Webb escreve que os ensinamentos de Gurdjieff, tendo destruído o mundo newtoniano do condicionamento herdado, erigiu um surpreendente universo einsteiniano onde nada era o que parecia, e onde as relações de causa e efeito eram borradas ou rearranjadas em novos padrões.”

Portanto, a única maneira de sobreviver ao tempo (o Implacável Heropass) é pelo contínuo processo de transformação e transmutação. É através deste processo que se cria um refinamento do corpo que sobrevive ao tempo. Gurdjieff descreve esse processo em “Relatos”:

“Você deve saber que até então o Sol-Absoluto tinha em si mesmo, para sua existência, apenas a força do ‘Autoegokrat’, isto é, uma força independente que não depende de nada externo a si mesmo. Essa mesma força, por sua vez, foi  formada apenas de duas Leis, a saber, a Lei de ‘Triamonia’ e a Lei de ‘Eftologodiksis’. A essas duas Leis, Nosso Criador acrescentou a terceira força, chamada ‘Fagolgiria’, por meio da qual o ‘Autoegokrat’ se tornou o ‘  Trogoautoegokrat’, isto é, uma força dependente de outras forças exteriores a ela.”

O Sol-Absoluto tinha em si todo o tempo e todo o espaço. Mas ao criar o universo, o mesmo Sol-Absoluto se coloca em risco, pois, também passa a ser vítima do próprio tempo. Assim, sua resolução é atualizar Seu próprio processo de “Autoegokat” (regulação por seu próprio Eu) para “Trogoautoegokrat” (o Eu que se alimenta de si). Portanto, voltamos ao processo antropofágico. Porém, esse é um processo de fagocitose. Ou seja, onde o órgão psíquico precisa aprender a devorar, transformar, eliminar e transubstanciar tudo que lhe é externo e  danoso.

Em outras palavras, em todo este  processo espiritual buscamos um retorno a fonte. Assim, se retornamos a fonte, significa que nos tornamos o próprio Sol-Absoluto. Para tanto, precisamos ser absorvidos pela própria fonte. Antes de mais nadaz precisamos estar em um nível ao qual podemos servir de alimento a essa fonte.

Um Deus no banquete

Todo o Cristianismo é baseado neste conceito onde um Deus vivo é oferecido em banquete. Cristo veio a vida com filho de Deus e, ao mesmo tempo, sendo o próprio Deus. Sua última ação foi a grande ceia onde partiu o pão e tomou o vinho dizendo que estes são seu próprio corpo e sangue. Enfim, esse ritual antropofágico está intimamente ligado a própria religião cristã.

Como cristãos (pelo menos os católicos), vamos a igreja (ou deveríamos ir) receber o corpo e o sangue de cristo. Então, o cristianismo é antropofágico? Sim, é um grande banquete antropofágico onde dilaceramos Deus e seu próprio filho, o devoramos e o digerimos. Claro, isso é simbólico. Todavia, o que comemos ali? Do que estamos alimentando quando participamos desse grande banquete? Estamos alimentando do “espírito de Deus”. Ainda mais, devemos digerir e absorver tal espírito para que passe a ser parte de nós. É isso que se espera de qualquer bom cristão.

Porém, quanto mais absorvemos a essência Divina, mais próximo de “Deus” estaremos. Logo, haverá o momento que você se tornará a oferenda a fonte. Você será a oferenda consagrada (consagrada = “com o sagrado”, oferecido aos deuses). Então, vamos digerindo e absorvendo para nos transubstanciar. Por fim, nos transubstanciamos para fundir-se a própria fonte. No entanto, é algo mais difícil de fazer do que pensamos.

Como fazer disso algo útil pra vida?

O grande trabalho para o crescimento da alma reside em como fazer o trabalho psicológico da digestão das impressões. O corpo ficará para as minhocas. Isso é inegável, a não ser que acredite em arrebatamentos. Porém, o que pode resistir ao tempo é a alma. E nessa alma reside todas as impressões que recebemos de nosso mundo psicológico. Todas as impressões impostas exteriormente oriundas da cultura. Ainda mais, estão também ali a nossas reações mecânicas, padrões repetitivos, valores e afetos (afetos em relação o que nos afeta, o que nos faz afetado).

Então, de nada adianta ir a missa e não mudar nada. Não se esforçar para observar em si seus desvios de conduta e não sacrificar aquilo que é necessário. Porém, muitos dizem que querem voltar a fonte. Na verdade, quem não quer se livrar da dor e do sofrimento? Quem não quer viver em paz? Ainda mais, querer viver em tal paraíso é uma satisfação biológica. O corpo relaxa quando nos sentimos em paz, protegidos, acolhidos, com provisões, sem doenças, vendo nossos entes queridos na mesma situação. Em outras palavras, não há estresse no paraíso.

Mas o fato é que amamos nossos vícios mais do que imaginamos. Estamos tão identificados com eles que achamos que tais vícios são a nossa própria identidade. Portanto, não temos coragem de sacrificá-los. Ninguém quer comer o próprio braço ou a própria perna no café da manhã. Da mesma forma, todo esse comportamento que nos desvia da fonte, que nos tira do caminho da virtude, vemos como algo próprio. Vemos como algo que sempre nos pertenceu e não como algo colocado em nós Entretanto, esse “eu” que está preso a essas impressões devem ser digeridas, absortas e usadas como alimento de um “eu” superior.

Deixe uma resposta