Corpo, essência e personalidade – parte 2

No início da vida, o ser humano é corpo e essência. A personalidade ainda é potencial e sem forma. Por isso a criança se comporta como realmente é. Seus desejos, seus gostos, o que gosta e o que não gosta expressam seu ser tal como é. Além disso, a personalidade começa a crescer assim que surge a necessidade de enfrentar a vida. Sobretudo, a personalidade é formada em parte por influências externas intencionais. Disso chamamos de educação, seja essa educação formal ou informal. Outra parte se forma pela imitação involuntária de adultos pela própria criança. Ainda há outra parte formada pela “resistência” da criança ao que está ao seu redor. Acima de tudo, pelos esforços para proteger sua essência. Mesmo que para tanto tenha de disfarçar, se necessário, sobre o que sente ser seu verdadeiro eu. Sobre o que é real em si.

Eu sou o que não sou eu

Portanto, pouco a pouco o ser adquire muitos gostos, sentimentos, ideias e julgamentos que são artificiais. Seja isso consciente ou não, desejado ou não. Isto é, adquirimos muitas coisas que não se relacionam com aquilo que nos é natural e expressa a nossa própria essência. Todos esses traços adquiridos pela educação, pela imitação, pela oposição e pela imaginação vão ocupando cada vez mais espaço no ser. Além disso, a essência se manifesta cada vez mais raramente na medida em que essa personalidade artificial aumenta sua força. Dessa forma a presença da essência é cada vez mais indireta e fraca. 

A essência ainda ocupa um lugar importante na infância. Portanto, o que vem de fora interage diretamente com a essência. Assim, combina com ela ou se opõe a ela. Em outras palavras, o que é recebido lhe é aceito ou recusado. Finalmente a essência confronta as impressões externas sem realmente se misturar com elas. Dessa forma, cria um complexo ainda permeado pela natureza essencial. É assim que os traços adquiridos na primeira infância deixam uma marca indelével na criança. Da mesma maneira deixa marcas para sua vida. Logo, essa mistura não homogênea forma o que se pode chamar de sua segunda natureza. 

Sua essência está no seu passado

Por isso mesmo, é valioso voltar o mais longe possível em suas memórias de infância e reencontrar gostos e sentimentos nelas. Isso é muito importante para uma pessoa que deseja conhecer a si mesmo. Dessa forma, as características de sua essência poderão vir à luz mais facilmente. 

Com o passar do tempo de nossas vidas, o que passa a existir recorre cada vez menos à essência. Restam somente traços adquiridos dos quais a essência desempenha um papel cada vez menor em sua formação. Logo, a essência apenas “dá uma cor” para a maioria das pessoas. Torna-se algo como um estilo de vida ou tendência geral que tinge toda a personalidade com aquele tom particular. Dessa forma, somente permeia o seu modo de viver. Todavia, há casos que até essa coloração desaparece totalmente do adulto. Sendo assim, nada resta de sua essência. Tal adulto não é mais do que uma personalidade de fachadas e mentiras. Pois, em relação a si mesmo, a essência é a verdade no homem e a personalidade é a mentira. 

Ser adulto não significa ter consciência de sua essência

Infelizmente um ser adulto não tem naturalmente mais consciência de seu ser. Tanto quanto é mais autoconsciente de sua essência do que uma criança. Mas uma criança muito pequena que ainda não aprendeu outras formas de sentir e de se expressar responde à vida em conformidade com sua própria natureza, isto é, com sua essência. Uma criança ainda é simples. Um adulto, ao contrário, adquiriu uma estrutura inteira, uma personalidade superficial que cobre todas as partes de seu próprio ser. Portanto, está apenas remotamente conectada consigo mesmo. Logo, ele se tornou dual. Dessa forma, tal pessoa  habitualmente responde à vida de acordo com essa personalidade superficial. Sem que sua essência seja trazida para essas respostas.

Porém, uma criança em sua essência ainda não tem toda a capacidade de compreensão de toda a complexidade das relações humanas. A essência precisa se adaptar as condições exteriores que a vida traz. A essência, apesar de conter todo o potencial, ainda precisa crescer. É como uma semente. Todavia, não possui energia suficiente em si para se desenvolver por completo. Então, precisa da personalidade para ser sua interface no mundo. Contudo, precisa desenvolver sua personalidade para que ela alimente a essência com sua energia. Somente dessa forma a essência continua seu processo de progressão. Ao mesmo tempo, o processo da atenção e identificação do “eu” se desloca da essência para personalidade. Por isso, o processo de crescimento pessoal é um processo de retorno a sua casa. Como na parábola do filho pródigo, onde esse representa a atenção que se identifica com a personalidade.

O processo de crescimento começa quando lembramos quem somos

Mesmo que uma pessoa deseja que sua essência entre em sua vida, somente conseguirá fazer através de um esforço especial. Além do mais, tal esforço deve ser renovado a cada vez. Com o tempo, a personalidade ocupa todo o espaço da vida comum. Passa a responder por si mesma a todos os chamados. Até que finalmente substitui a essência. Porém, é esta substituição a causa principal do estado mecânico do ser humano. É a razão pela qual nos tornamos escravos de nós mesmos. Entretanto, também é a consequência natural da lei do menor esforço. A lei que rege tudo o que vive na corrente involutiva. Essa substituição ocorre inconscientemente à medida que o homem cresce. Acontece por sua inércia natural. Somado a falta de sinceridade consigo mesmo, uma complacência constantemente reforçada pela educação habitual.

Nossas funções respondem incessantemente à vida. Entretanto, é mais fácil para nós responder como o mundo exterior exige do que experimentar nossa situação real e responder “da alma e da consciência”. Mais fácil responder da maneira que já foi aprendida do que questionar tudo a cada vez. Do que adaptar a resposta de acordo com o que se sente interiormente certo. Sendo assim como se fosse a primeira vez em cada ocasião. Ademais, várias personagens se constroem em nós por força das circunstâncias. Tais personagens se acostumam a lidar com cada uma das situações habituais em que nos encontramos. 

Jean Vaysse

Sobretudo, é mais fácil imaginar do que agir. É mais fácil acreditar do que olhar e ver que esses personagens gradualmente se saturam de ilusões. Dessa forma, tornam o contato com a realidade cada vez mais remoto. Todavia, esses personagens têm relações tão contraditórias entre si e com a realidade que não param de gerar choques destrutivos. Contudo, toda essa estrutura da personalidade é protegida por um sistema de ‘”amortecedores”. Essa estrutura leva nosso nome: “Sr. Fulano de tal”, Pedro, Paulo, João ou Maria. O nome que damos e pelo qual os outros nos conhecem. Assim, aparecem para os outros e são úteis para eles. Porém, sem suspeitar que não corresponde ao que realmente somos.

Entretanto, geralmente as pessoas não esperam nada mais que isso. Soma-se ao fato que toda essa estrutura da personalidade é apaixonadamente defendida tanto por nós quanto pelos outros por um auto-amor hipersensível. Logo, isso assegura que a personalidade formada e seus funcionamentos se manifestem através de cada um de nossos personagens de acordo com ideias e imagens rigidamente fixadas. 

Dificilmente as pessoas são o que vemos

Assim, na grande maioria dos casos, nada do que vemos em uma pessoa é realmente seu. As pessoas são uma mentira viva, sem que as pessoas saibam. Constantemente, sua personalidade afirma saber tudo sobre si mesmo. Sabe tudo sobre a vida, Deus, o universo e tudo mais. Mas em si mesmo, em sua essência, em seu ser, ela não sabe nada sobre nada disso. Pior ainda, ela não verificou nada disso que diz saber. Não possuímos todos esses conhecimentos que são atribuídos a si mesmo. Tais conhecimentos foram somente pegos de seus arredores. Tampouco possuímos uma única das qualidades que acreditamos ter. Afinal, apenas as imaginamos sem se dar ao trabalho de testá-las pela experiência.

Mas afinal, como saber o que é essência?

Talvez a melhor maneira de diferenciar a essência da personalidade é definindo o que não é a essência. Essência, por definição, é tudo que invariável. É a característica mais essencial de alguma coisa. Representa a sua verdadeira realidade. O seu atributo único e distinto de tudo o mais. Se pegarmos um diamante como exemplo, o que voce diria de sua essência? O que é atributo único em um diamante? Com certeza podemos citar sua durabilidade, estabilidade e dureza. Se esse é lapidado, também podemos dizer do seu brilho. Todas essas descrições únicas combinadas é a essência do diamante. É essência em singular porque não se pode tirar um atributo e manter a essência do diamante. O diamante passa a ser essa fusão de atributos indistinguíveis. Então o que não é diamante não é a essência do diamante. 

A personalidade por outro lado é o que é ensinada. Está inserida na cultura e são valores mutáveis. Podem ser bastante perenes. Todavia não são universais. Por exemplo, no Brasil se ensina que a escolha de um time de futebol é para vida. Não podemos mudar a escolha feita do time que se escolhe para torcer. Quem muda de time é “vira folha”, “vira casaca”, é malvisto pelos outros. É como se aquela pessoa perdesse a credibilidade e o respeito do grupo. É uma quebra de um código de honra cultural. A quebra de um pacto social. Digno de punição dos mais severos castigos. Com certeza, para muitos, é um crime que condena a alma ao inferno de qualquer pagão.

No entanto, reflita sobre esse exemplo. Será que tal regra é tão fundamental assim? Talvez sim. Contudo, ela é fundamental para o nível que pertence. talvez tenha sua importância no nível da personalidade, da cultura e da vida. Deve ter sua serventia para ensinar algo que poderá ser benéfico a essência. No entanto, isso não faz parte definitivamente de nenhuma essência. Essa regra não faz o menor sentido para uma sociedade em que futebol não tem nenhuma relevância.

Faça sua avaliação

A essência se apresenta quando descascamos aquilo que não é essência. O que não mais pode ser removido é a essência. O centro emocional superior é o centro que nos coloca em contato com a essência. Ali somos capazes de ver o que é importante, essencial, imperecível e individual. Assim, sugiro que observe tudo que lhe irrita, te desgasta, desmotiva. Também observe tudo que lhe excita, motiva e entusiasma. Note o que é realmente essencial nisso e o que são coisas da vida. Porém, lembre-se que a essência cresce dentro da vida e, portanto, precisa da vida. Temos ainda mais prazer e alegria de viver quando a essência se reconcilia com a personalidade. Porém, também nos damos conta de nossa responsabilidade sobre nossas escolhas e sobre o nosso destino. 

Vamos continuar a análise sobre essência e personalidade nas próximas publicações. Um ótimo início de semana a todos e bons estudos a todos vocês

Lauro Borges

Esse artigo faz parte de uma série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.

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