Quem começou a conhecer ou conhece o quarto caminho com certeza já ouviu falar da importância da auto-observação dentro deste sistema de aprendizagem. Aqui mesmo já escrevi algumas vezes sobre o tema. No entanto, esse assunto sempre merece ser repassado, pois, seu correto entendimento é fundamental. Sobretudo, não se obtém os resultados necessários ao realizar erroneamente a auto-observação. Afinal, é somente através da auto-observação correta que identificamos nossos conteúdos que necessitam de transformação.
Compartilho aqui minha experiência pessoal e também observada em conjunto com outros praticantes da auto-observação. Nesse processo é comum cometer dois erros básicos. Primeiramente é necessário entender o conceito da autoimagem. De outra forma, a imagem que temos de nós mesmos. O segundo ponto é entender que auto-observação é, antes de mais nada, um exercício de atenção livre.
“Nada é mais tenaz do que a falsa imagem que temos de nós mesmos, e leva muito tempo, muitos auto-enganos e muitas observações sinceras, antes que uma pessoa comece a entender isso e se ver como ela é.”
Jean Vaysse – Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left by Gurdjieff
Autoimagem
Todos temos valores, julgamentos, percepções, gostos e desgostos sobre o que vemos externamente no mundo. Da mesma forma, existe também uma apreciação interior, uma apreciação sobre si. No entanto, temos sérias dificuldades cognitivas e emocionais que não nos permitem perceber a realidade como ela é. Por isso, o que normalmente temos é uma percepção falsa ou incompleta sobre a imagem de si. Essa imagem de si não foi construída de um dia para outro. Foram anos de influências externas positivas e negativas. Tais influências, ao serem recebidas pelo corpo, criaram reações prazerosas ou doloridas. Soma-se a isso a reatividade do ego que cria padrões sobre o que gostamos e de que não gostamos.
“Se tivermos alguma compreensão dessa situação, começamos a nos questionar sobre nós mesmos e percebemos que precisamos aprender a nos voltar para nós mesmos e para nossa vida interior. Precisamos nos ver como somos, em vez da imagem que temos de nós mesmos.”
Jean Vaysse – Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left by Gurdjieff
Padrões, autoimagem e onde foi parar meu eu?
Tudo isso acaba por criar um monte de padrões comportamentais. Finalmente, tais padrões estão desassociados um dos outros, pois, não possuímos um centro. Por fim, temos uma colcha de retalhos com a imagem de si lutando para manter uma aparente coerência em um mundo de puro caos. Um mundo onde uma falsa imagem tenta manter conteúdos aceitos e tolerados à vista enquanto tenta ignorar “o que não se quer ver”. Em suma, a nossa falsa autoimagem ignora e rejeita tudo que “não cabe” em sua pintura.
Ainda por cima, devemos lembrar que nossos três centros de inteligência trabalham em completa ausência de harmonia.
“Então, as coisas acontecem sozinhas – falando, rindo, sentindo, agindo – mas elas o fazem automaticamente e nós mesmos não estamos lá. Uma parte ri, outra fala, outra age. Não sentimos: falo, ajo, rio, observo. Nada que seja feito dessa forma pode ser integrado em um todo. Vivemos no esquecimento de si mesmo, e tudo acontece sem deixar vestígios, a vida se vive, mas não há “fruto” para quem a vive.”
Jean Vaysse – Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left by Gurdjieff
Devemos nos revoltar contra nossa autoimagem?!
No entanto, não devemos ignorar ou simplesmente se revoltar contra essa força estabilizadora do ego e da autoimagem. Da mesma forma que por vezes essa força provoca tantos problemas, também é essa força que nos mantém relativamente funcionais e sãos. A perda dessa força estabilizadora causa a liberação de todo caos interior. Essa força deve aprender a ceder seu poder a um verdadeiro centro de comando e decisão em um longo processo de autoconhecimento e autodesenvolvimento.
Então, fica um alerta: não existem atalhos e nem fórmulas mágicas. Bem como a verdadeira transformação acontece quando criamos em si um centro verdadeiro. Um centro de vontade liberto das amarras da falsa autoimagem, trazendo balanço entre o caos e a ordem interior. Este centro não é a auto-observação. Porém, é a auto-observação que alimenta esse centro.
Compreender minimamente o que somos é importante até para saber o que estamos fazendo ao nos auto-observar. Realizar o exercício de auto-observação sem compreender essas questões básicas é correr o risco de cair em julgamentos, autoanálises, conflitos e confrontos internos desesperadores. Tudo isso leva a tentativas frustradas de transformação prematuras. Infelizmente, esse fracasso é mais danoso que simplesmente não se auto-observar.
Conheça a ti primeiro antes de pensar em transformação
Então, esqueça qualquer conceito sobre transformação quando estiver realizando auto-observação. Este é um exercício de estudo sobre si e não de ação sobre si. Entender, aceitar e realizar a auto-observação sob esse conceito é o primeiro grande desafio. Você pode ao ler isso aqui dizer que já entende tudo isto suficientemente. No entanto, ainda assim acontecerá de cair nessa armadilha.
“A auto-observação é inútil se qualquer observador puder tomar meu lugar e se “eu”, o sujeito, não estiver lá para entender enquanto a observação está acontecendo.”
Jean Vaysse – Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left by Gurdjieff
A atenção livre e o exercício da auto-observação
A atenção que normalmente temos é uma atenção unilateral direcionada para o que observamos. Não leva nada além disso em consideração. Da mesma forma, a atenção de um centro não é plena atenção. Normalmente quando fazemos algo temos um centro com atenção em uma coisa e outro centro noutra, outro ainda em outra e assim vai. Não há integração e sim um centro adormecido, submetido ou submetendo o outro ao seus desejos até que sua energia se esgote. Assim, deixa de ser o centro “mestre” e torna-se o centro “escravo”.
Então, para executar corretamente o exercício da auto-observação devemos criar a atenção livre. Essa atenção livre é desassociada da autoimagem e de seus julgamentos. É simplesmente a atenção que observa. Nada mais. No entanto, o ego e sua autoimagem estão o tempo todo usurpando a nossa atenção. Sendo assim, é necessário um esforço consciente para realizar o exercício. Mais uma vez devemos lembrar que esse esforço não é transformação. O esforço é a aplicação da atenção livre em auto-observação. Portanto, não tem a intenção de mudar nada. Apesar disso, muitas vezes você pode notar que ao observar a si algumas mudanças acontecem automaticamente. É como na teoria quântica onde se diz que o observador de um fato tem influência em como esse fato é percebido.
Como executar o esforço da auto-observação
A auto-observação começa pelo esforço de lutar contra a total identificação da atenção aos hábitos que nos fazem parecer o que imaginamos ser. Inicialmente é uma luta inglória, pois é inútil tentar alterar qualquer coisa no atual momento. Por muito tempo não seremos capazes de mudar o que somos. E observar os mesmos comportamentos compulsivos demanda energia. É tedioso e cansativo. A atenção se esvai, é roubada pelos objetos, devaneios da mente, pela fuga do tédio. Por isso, devemos nos esforçar em criar uma segunda atenção. Essa é a atenção livre que não participa ativamente além do fato de registrar o que somos, como agimos, como nos sentimos, como colocamos nossos corpos, em quais posições, qual o nosso tom de voz, e por aí vai.
Para começar, nossa atenção estará sempre mudando. Vai para uma direção, ora para outra, ora para mim (meu eu que participa do exterior), ora para o que observo em mim. Alterne a atenção entre observar a si e seu eu exterior a uma velocidade mais rápida ou mais lenta. Poderá notar que isso acontece mais facilmente em uma direção que em outra. No início, não há suporte estável no qual nossa atenção possa se basear. A verdadeira auto-observação, se a tentarmos, logo parece depender tanto desse suporte quanto da própria atenção.
Com o tempo se nota que há três elementos atuando no ato de auto-observação.
- Existe o eu que observo,
- face a face com o que observo dentro de mim;
- uma atenção que os conecte.
No entanto, essa atenção não é a mesma que se identifica, que se dissolve na interação entre eu e o objeto exterior ou que se identifica e se dissolve em meus conteúdos interiores. Essa é a atenção livre. Logo, a qualidade do resultado, a qualidade da observação, depende da minha capacidade de gerar atenção livre.
Fotos de si
Ao se observar com imparcialidade, você se torna ciente da ilusão da autoimagem. Percebe o tanto que mentimos para nós mesmos. Assim, entende que devaneios e imaginação estão entre os principais obstáculos para a auto-observação, para se ver como você verdadeiramente é. Porém, nada é mais doloroso e ao mesmo tempo libertador para uma pessoa que se ver de verdade.
Por último, devemos tomar o cuidado com a “doença da auto-observação” e confundir a mesma com o trabalho interior. O Trabalho é muito mais abrangente que simplesmente auto-observação. Devemos desenvolver nossa cultura, inteligência, senso crítico, emoções, força física e a força de vontade. auto-observação é uma ferramenta poderosa, porém, é somente um meio. Não se deve perder tempo nem esforço excessivo em auto-observação. Dois a três intervalos diários de três a quinze minutos são suficientes no início. A qualidade da auto-observação é mais importante do que a quantidade.
“Nenhuma pessoa pode conceber empreender tal tarefa a menos que tenha compreendido a que está conduzindo, e, a menos que se lembre constantemente por que o está empreendendo. Mas, se alcançou tal entendimento, ou mesmo, no início, se entendeu que é necessário que se submeta a esta disciplina, então, a luta contra os hábitos torna-se imediatamente um meio óbvio de se ver como se é, e, sem saber, o primeiro instrumento para realizar sua transformação interior. Despertar essa dupla atenção de que se necessita, te obriga a enfrentar esses hábitos que lhe mantém adormecido, automatizado e mergulhado em um constante esquecimento de si mesmo.”
Jean Vaysse – Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left by Gurdjieff