Gurdjieff foi famoso por criar e reinventar vários termos para explicar o trabalho sobre si. Ele dizia que tomamos tudo de uma forma tão automática que não mais avaliamos adequadamente as palavras antes de usá-las. Várias são as palavras, frases e termos criados ou usados de forma específica por ele. Entre essas está o entendimento de consideração interior e consideração exterior.
Consideração interior e contabilidade das emoções
O que vem a ser consideração afinal? Consideração para Gurdjieff tem a ver como relacionamos eventos externos com nossa pessoa, como levamos “em conta” uma coisa em relação a outra. Para Gurdjieff existe dois tipos de consideração. A primeira é a consideração interior. É sobre como fazemos contabilidade com tudo e com todos ao nosso redor. Assim como uma pessoa leva para o lado pessoal o que os outros pensam dele/dela e desperdiça energia pensando nisso. Essa pessoa é capaz de considerar a sociedade como um todo, ou mesmo o clima, como pessoalmente injusto com ele/ela por não atender suas próprias necessidades. Outras formas de considerar internamente são o medo de que ele não esteja considerando outra pessoa o suficiente e a crença de que ele “deveria” fazer isso ou aquilo. Estes “deveres” são decorrentes do medo do outro: o dever deve estar corretamente conectado com o objetivo.
Então consideração interior tem a ver com demandas e necessidades internas do indivíduo. Assim, são considerações subjetivas, independente de uma razão objetiva e comum. Agimos muito em nossa vida presos a essas considerações interiores. Elas nos forçam a agir ou cobrar que os outros ajam de determinada maneira em determinadas situações. Em conclusão, são padrões de uma máquina e estão enraizadas na parte mais mecânica de nosso centro emocional.
O sofisticado complexo emocional
Muitas vezes são deveras sofisticadas e nos fazem crer que agimos pelo bem e altruísmo. No entanto, agimos pela necessidade de satisfação dessa demanda interior e somente a ela. Não cumprir com uma consideração interior traz o sentimento de ofensa, desrespeito, provocação, insegurança, entre outras coisas.
Por outro lado, a consideração exterior está ligada a se colocar no lugar do outro de maneira legítima. Falando assim parece fácil. Porém, lembremos que Gurdjieff nós alerta a nunca aceitar nem suas palavras e nem seus conceitos sem experimentar e validar em nós mesmos. Também, vale explorar mais desse conceito.
Consideração interior e o caminho do Monge
A consideração externa correta ocorre quando um homem se lembra de que os homens são máquinas e não podem nem se ajudar e muito menos outros no modo como funcionam. Assim com isso é especialmente importante em relação a outras pessoas que estejam engajadas no trabalho interior. A consideração exterior é a ação máxima que uma pessoa pode realizar em seu centro emocional. É extremamente difícil manter-se engajado por longos períodos em consideração exterior. Como já descrevi anteriormente, O caminho do Monge (ver aqui) é justamente aprender a transformar consideração interior em exterior. Para tanto, o Monge precisa aprender a amar a Deus sob todas as coisas e anular sua existência.
Todavia, não é possível praticar consideração exterior sem uma correta preparação. Para tanto, se faz necessário ter presença e ter trabalhado suficiente sobre si. A presença é o estado que nos permite realizar a auto-observação sem julgamentos. Dessa forma, a auto-observação vai nos informando, nos ensinando sobre nossos padrões de identificação. Então, são esses padrões de identificação que nos levam a agir exatamente sempre da mesma forma, como máquinas. A consideração interior está diretamente ligada ao “auto-amor” que sentimos por essa imagem. É a vaidade, nosso narcisismo, o apego ao que identificamos como “eu”. É o nosso coitadismo e autopiedade que julga a si, a todos e a todo momento em uma gangorra emocional de sobre ou sub valorização. A identificação provoca um eterno diálogo mental. Por assim dizer, é como um trem de longos vagões de pensamentos que não se calam e não param um só segundo.
Consideração interior e identificação
Identificação é o oposto de autoconsciência. Em um estado de identificação, a pessoa não se lembra de si. Então, a pessoa está perdida para si mesmo. A atenção é dirigida para fora e nenhuma percepção sobra para os estados internos. E a vida comum é quase totalmente gasta em estados de identificação.
Kathleen Riordan define a ligação de identificação e consideração da seguinte forma:
Identificar-se com as expectativas de outras pessoas é chamado de “consideração”. Podemos distinguir dois tipos de consideração, interna e externo. A consideração interna é baseada no sentimento de deficiência de uma pessoa nos estados menos desenvolvidos que sente na maior parte do tempo. Neste caso, a deficiência é sentida quando as pessoas deixam de nos dar atenção ou apreciação suficiente. É manter contas internas do que demos e o que, portanto, nos é devido, e se sentir mal, pisoteado e magoado quando os outros não pagam. Não pode ocorrer sem identificação.
A consideração externa, por outro lado, é a prática da empatia e do tato. É a verdadeira consideração. Depende, portanto, de certa confiabilidade e consistência de atenção e esforço por parte de quem aspira praticá-la. Curiosamente, as tentativas de consideração externa frequentemente se transformam em consideração interna, quando a pessoa que faz o esforço de considerar outra no sentido externo não encontra gratidão ou carinho em troca. A consideração externa deve ser sua própria recompensa e nada pode esperar ser correspondido.
The Gurdjieff Work, Kathleen Riordan
É fácil observar hábitos de consideração interior com um pouco de honestidade. Já adianto que a maioria desses hábitos estão ligados a compulsões, mesmo que sejam moderados. O hábito de “tomar uma cerveja” para relaxar está estreitamente ligado a consideração interna. A não satisfação cria uma reação de que “eu preciso disso e eu mereço isso” como compensações. Com isso, vêm os hábitos de sexo, alimentação, afirmação de poder e “sentir-se importante”.
O difícil trabalho de enfrentar a consideração interior
É muito difícil olhar honestamente para tudo isso. A consideração interior não gosta de ser vigiada ou observada. Gurdjieff usava um processo para encontrar a consideração interior mais sensível de uma pessoa e, em seguida, “pressioná-lo” com força. Esse processo remove as “máscaras” que as pessoas normalmente usavam e, assim, ajudava Gurdjieff a ver seus mundos internos. Isso fornecia “riquezas interiores” aos seus alunos. Porém, tais métodos funcionavam porque havia total confiança e respeito entre o grupo, aluno e mestre. No entanto deixo esse tema para outra oportunidade.
Somos rapidamente assaltados pela consideração interior na ausência de plena atenção e presença no momento, . A presença em si muitas vezes não impede que haja uma torção entre consideração exterior e interior. No entanto, a auto-observação constante que cria a possibilidade de gerar uma força suficiente para o não-agir. Dominar a arte da consideração exterior é dominar a si e todos os conceitos do Trabalho. Em outras palavras, é o ápice do desenvolvimento humano e espiritual.
Quem pratica a auto-observação, mais cedo ou mais tarde chegará ao terror da situação. Falei sobre isso no último artigo e você pode ler aqui. Para lembrar que “o terror da situação” é o desvio do homem de seu verdadeiro propósito: de desenvolver a vida externa em detrimento da interna. Mais uma vez digo que ninguém passa do desenvolvimento da personalidade para a essência sem ter de encarar a dura realidade de nossas emoções egoístas.
No entanto, é necessário perceber em mim o que sou, que não consigo considerar extremamente sem que mude a minha necessidade de auto-amor, autoconsideração e coitadismo. Assim como só é possível perceber tudo isso honestamente se não há julgamento. Somente assim percebemos o “terror” de que somos escravos desses sentimentos e são estes “eus” que sempre estamos nos identificando que comandam a nossa vontade.
Choque! Consideração em transformação
Somente tal choque pode gerar uma mudança no ser. É o choque consciente que funciona como terceiro alimento a alma. Assim, o Trabalho se torna o princípio ativo e a personalidade e as funções do corpo, tornam-se passivos, esperando para servir. Quando o Trabalho é o princípio ativo, surge a bondade verdadeira.
Pelas palavras de Robert Moore (Red Hawk):
Virtudes surgem. O ser assume a responsabilidade de domar e treinar o mamífero, função que antes era desempenhada pelo mestre, o professor. O choque do ser só acontece quando a inteligência e a consciência foram despertadas no ser. Quando a inteligência é despertada, vejo claramente o que é necessário e desejado e entendo as implicações do que estou vendo. Eu faço escolhas inteligentes. Quando a consciência é despertada, posso sentir o choque do terror profundamente, porque fiquei sensibilizado pela consciência para sentir sofrimento. Não estou mais entorpecido.
Quando o sofrimento da consciência atinge a massa crítica, o choque do terror tem o efeito de despertar o ser. Isso é transformador. Eu me torno consistente e confiável quando isso acontece, porque eu não sou mais movido pelo hábito, mas pela atenção ao que é necessário e desejado no momento presente. Começo a me comportar apropriadamente, não manifestando mais emoções inadequadas. É a consciência começando a se conhecer, aprendendo a aprender e criar, ao mesmo tempo que causa o mínimo de dano. É amor objetivo em processo de se tornar
Self observation : the awakening of conscience : an owner’s manual / Red Hawk.
Somente o processo conjunto de auto-observação, devoção ao Trabalho e sentido claro pode levar ao terceiro choque, ou choque consciente. Dessa forma, nada transforma verdadeiramente antes que tal processo ocorra. A necessária auto-observação sem julgamento com relaxamento do corpo, devoção incondicional a sua obra interior e sentido claro de um objetivo a ser alcançado. Sem esses elementos não há vontade, sentido e desejo em suportar o sofrimento necessário para realizar sua obra. O choque que cai em um ambiente não preparado logo se transforma em consideração interior, autopiedade, coitadismos e auto-amor. Tudo torna alimento a ilusão da falsa personalidade. Logo, você deve aprender que você é também responsável por alimentar quem te escraviza