Porque mentir pra si mesmo é sempre a melhor mentira

Entender qual é o verdadeiro centro do ser humano não é algo fácil. Requer principalmente coragem e sinceridade em querer ver o que não se gosta de ver. A realidade que se abre sobre nós está longe de ser a idealizada pelas nossas ilusões. O simples fato de questionar essa realidade provoca duas reações automáticas. 

A primeira reação é negar o argumento. Negar que exista alguma outra realidade além da presente. Desta forma se tenta suavizar ou justificar a dureza da realidade. A segunda possível reação é alguém dizer que concorda plenamente com os argumentos aqui apresentados. E assim diz que entende o que lhe é dito e como a vida é feita de ilusão. Esse parece ser um sábio, cheio de conhecimento e entendimento. No entanto, muito mais provável que esse simplesmente usa a afirmação a seu favor. Serão longos diálogos explicativos e ilustrativos de como a vida é feita de ilusão. No entanto, isso não significa que entenda verdadeiramente o que isso significa. Muito menos que aplique tais conceitos em seu desenvolvimento interior.

O caminho é torto mesmo. O ego é a melhor adaptação ao momento. Sempre maleável. Possui uma capacidade incrível de iludir, não só aos outros, mas, também de iludir a si próprio. É uma capacidade tão incrível que permite transformar toda a dolorosa verdade em uma doce ilusão. Negar ou afirmar torna-se um consolo somente. Uma fuga do contato íntimo com essa realidade. 

Mas qual é a grande verdade? Como o Muito Sanissimo Ashiata Shiemash disse a muito tempo atrás, a grande verdade chama-se “o terror da situação”.

No capítulo 26 do livro Relatos de Belzebu para seu neto, Belzebu fala sobre o ensino de Ashiata Shiemash, um Mensageiro do Alto, que veio ajudar a humanidade.  Ashiata entende que os humanos têm funções semelhantes à Fé, Esperança e Amor (embora não genuínas) e que a Consciência Objetiva está enterrada em seu subconsciente.  Ele decide criar uma maneira de ensinar a quem busca a verdade. Assim dar condições para que a consciência objetiva possa participar da existência em vigília.  Orage, aluno de Gurdjieff, define “o terror da situação” como sendo o desvio do homem de seu verdadeiro propósito: ele desenvolve a vida externa em detrimento da interna. 

Gurdjieff disse que vivemos em um mundo mecânico. Reconhecer isso é muito duro, pois, ofende a grande ilusão de que somos seres livres. Que somos capazes de usar o livre arbítrio e que somos capazes de fazer. Ofende o dito “homem moderno e culto” por dizer a este que sua bondade não passa da primeira página do livro. 

Pois bem, digo que ninguém passa do desenvolvimento da personalidade para a essência sem ter de encarar essa dura realidade. Algumas tradições usam a seguinte alegoria: é como habitar  uma casa enorme, porém, com suas portas e janelas fechadas. Um dia posso ver uma pequena fresta de luz que passa por um vão de janela. Essa luz trespassa o vidro sujo e cortinas empoeiradas. No entanto, ainda assim consegue chegar ao centro desse ambiente. 

Pode ser que mesmo esse pequeno facho de luz venha a provocar dor em meus olhos. Contudo, posso me acostumar com essa luz. Se eu fico imóvel, vendo essa luz e seu entorno, logo a dor passa. Além disso, começo a perceber a situação que me rodeia. Esse pequeno facho luminoso apresenta o estado do interior dessa sala. Móveis empoeirados e empilhados. Bagunça e entulhos velhos acumulados por todo os cantos. Ainda tenho dificuldade de mover perante a falta de luz e pela confusão que me rodeia. Esse é o choque de quem percebe o seu estado interior verdadeiro.

Se tento lembrar, dificilmente saberei como cheguei até aqui. Do mesmo modo, dificilmente saberei como sair dessa situação. No entanto, o que parece ser desesperador e aniquilador é na verdade uma libertação. A partir do momento em que percebo meu estado interior verdadeiro já não sou mais os mesmo. 

O facho luminoso que penetra esse cômodo escuro e insólito é o poder da auto-observação. Quando aceito essa luz que me chega, sem fechar os olhos, sem lutar contra o que a luz apresenta, também percebo uma possibilidade diferente, não mecânica e habitual. Uma possibilidade dura porém verdadeira. Algo fora da ilusão que me aprisiona.

Porém, meus impulsos são de conservar o que se tem. Transformar é algo anti natural. O que é natural é manter minimamente minha existência enquanto caminho rumo a dissolução. É dessa forma que toda a matéria e vida orgânica se desenvolve. E, para tanto, não há muita necessidade de esforço, além do básico embutido em nossa consciência instintiva. Por isso, é necessário muitos choques ao longo de muito tempo para que a transformação venha a ocorrer. 

Quando tomo o primeiro contato com essa realidade posso me sentir excitado e até acreditar que posso imediatamente me transformar. Porém, basta essa excitação passar para entender que colocar tudo em ordem tomará tempo e esforço. Aqui cabe uma outra lição do Trabalho. O esforço requer energia, e não temos essa energia disponível. Logo, os primeiros choques devem servir para comprovar o que o ensinamento do Trabalho diz sobre mim. Pois, comprovam o ensinamento do Trabalho, mesmo que parcialmente. Assim, também me permite ganhar mais fé em todo o processo.

O Muito Sanissimo Ashiata Shiemash ensina que devemos observar nossa realidade e comprovar por nós mesmos qual a verdade de nosso conceito interior. Julgamos que sabemos o que é amor. No entanto, sabemos o que é auto-amor. Amamos antes de tudo a nós mesmos. Sou dominado por paixões e autoconceitos. Sou dominado por “auto-coitadismo”, vaidade, egoísmo e soberba. Estou sempre a me defender ao menor sinal de ataque a minha preciosa autoimagem. Faço desse conceito tão precioso que até aceitar essa verdade torna-se algo exclusivo a mim. Me justifico e me consolo, me deprimo e me sinto injustiçado. Afinal, mereço sofrer minha tão especial e única dor. 

O personagem de Gurdjieff, Ashiata Shiemash, define três tipos de fé: “Fé da consciência é liberdade, Fé dos sentimentos é fraqueza, Fé do corpo é estupidez”. A fé que normalmente experimentamos é a fé em algo que interceda magicamente por uma situação. A fé da consciência é a luz que ilumina o caminho. Essa luz que mostra o processo, o que fazer e como fazer. Que nos leva a crer que o resultado chegará a quem persistir com esforço genuíno. O Quarto Caminho somente pede duas coisas ao seu praticante: uma honesta auto-observação sem julgamentos e aprender a sacrificar o desnecessário.

Não acredite em nada, nem mesmo em você.  Acredito apenas se tiver prova estatística, isto é, apenas se tiver obtido o mesmo resultado repetidamente.  Eu estudo, trabalho para orientação, não para acreditar.

Gurdjieff

A esperança talvez seja o sentimento mais complexo de ser entendido. As pessoas ficam entre sentimentos de que precisam fazer. Precisam reagir, precisam pensar, precisam entender, precisam mover. Tudo isso é o movimento que protege a ilusão. Nada precisamos fazer, pois, não podemos nada fazer. Isso é tão simples quanto está escrito. O que torna difícil é aceitar essa verdade. Porém, isso não deve realmente ser aceito como um dogma. Isso deve ser visto acontecendo dentro de você. 

Uma vez um grande amigo e já senhor me disse que nossa verdadeira liberdade, nosso verdadeiro livre arbítrio, encontra-se em uma pequena lacuna entre o que percebemos do mundo e nossas reações. Justamente nesse pequeno e minúsculo intervalo, a única coisa que posso fazer é não fazer. Então, aquilo que seria uma ilusão de uma ação consciente vem a tona como uma reação mecânica e inconsciente. Não há pensamentos ou conhecimento que resolva isso. Não há teorias cósmicas ou esotéricas. Há o não agir somente, a entrega a minha profunda incapacidade de controle. Somente nesse momento sou capaz de entender o que é fé e esperança. Nesse momento eu posso me auto-observar e ver meu mundo de ilusões e fantasias. Posso ser honesto comigo mesmo e ver como vivo em um mundo de sonhos acordado.

Controle é coisa da mente. O que devo fazer é auto-observação. Somente isso. Naturalmente vou me acostumando e notando os padrões. O caminho é andar no sentindo contrário de que toda essa nossa sociedade demente me fez percorrer. É ter cada vez menos controle. Isso é difícil e daí que se pode entender o que significa sacrifício do sofrimento desnecessário. Como me apego a sentimentos e pensamentos tão desnecessários a minha existência. Como o auto-amor nada tem a ver com o verdadeiro amor e compaixão.

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