Somos livres em nossas escolhas ou muitas delas somente repetem um padrão repetitivo aprisionado? Essa é uma das grandes perguntas filosóficas e psicológicas que qualquer buscador da verdade encontrará em seu caminho. É possível entender o quanto somos livres em nossas decisões? Quantas vezes ficamos aprisionados em nossos comportamentos e obsessões? Sobre isso, George Gurdjieff, começa sua obra “Relatos de Belzebu a Seu Neto” justamente falando sobre o que hoje é chamado teoria do aprisionamento. Ao entender isso, espero lançar luz sobre como podemos evitar a armadilha do aprisionamento. Assim como buscar a liberdade e a autenticidade em nossas vidas.
Gurdjieff, aprisionamento e a História do Curdo
Em “Relatos de Belzebu a Seu Neto”, Gurdjieff começa com uma história sobre um curdo da Transcaucásia. Tal personagem ao visitar a capital, se depara com uma fruta vermelha e atraente em uma banca de mercado. Ele fica tão encantado com a aparência da fruta que decide gastar todas as suas economias para comprar uma libra (aproximadamente meio quilo) dessas frutas.
Depois de terminar seus negócios na cidade, o Curdo começa sua jornada de volta para casa. Ao anoitecer, enquanto caminhava por vales e montanhas, ele decide fazer uma refeição rápida com as frutas que havia comprado. No entanto, ao dar a primeira mordida, ele sente uma queimação intensa, pois a “fruta” que ele comprou era na verdade pimenta.
Contudo, apesar do desconforto e da dor, ele continua a comer a pimenta. Todavia, um vizinho experiente passa por ele e o adverte para parar de comer as pimentas. Afinal, estava na cara que aquilo iria arrebentá-lo por dentro. No entanto, o curdo responde que não irá parar, pois, gastou todo o seu dinheiro naquelas belíssimas frutas. “Mesmo que isso signifique a morte”, responde o Curdo determinado a comer todas as pimentas.
Aprisionamento de vontades, isso já aconteceu com você?
Gurdjieff usa essa história para ilustrar um princípio fundamental da natureza humana: a tendência de persistir em uma ação ou situação, mesmo quando está claro que ela é prejudicial. Porém, fazemos isso simplesmente porque investimos nesta situação. Gurdjieff sugere que esse princípio será um tema recorrente em seu livro.
Portanto, essa pequena anedota que abre o livro de Gurdjieff não pode passar despercebida como tema central do trabalho sobre si. A anedota do curdo e a pimenta, contada por Gurdjieff, é uma metáfora poderosa que pode ser aplicada a muitas situações cotidianas. Aqui estão alguns exemplos:
- 1. Investimentos Financeiros: Imagine que você investiu uma grande quantidade de dinheiro em uma ação específica, esperando que ela aumentasse de valor. No entanto, ao longo do tempo, a ação começa a cair e continua a cair. Em vez de vender a ação e cortar suas perdas, você continua a segurá-la, esperando que ela se recupere. Isso é semelhante ao curdo que continua a comer a pimenta, apesar do desconforto, porque ele pagou por ela. Aqui, o compromisso interno de não perder dinheiro pode mantê-lo preso a um investimento prejudicial.
- 2. Relacionamentos Insatisfatórios: Suponha que você esteja em um relacionamento que não está funcionando. Há conflitos constantes, falta de respeito e você se sente infeliz. No entanto, você julga ter investido tanto tempo e energia no relacionamento que tem medo de “desperdiçar” esse investimento. Então, você continua no relacionamento, mesmo que esteja lhe causando dor. Isso é semelhante ao curdo que continua a comer a pimenta, apesar da dor, porque ele investiu seu dinheiro nela. Neste caso, o compromisso interno de manter o relacionamento, apesar do sofrimento, pode impedir que você tome a decisão saudável de sair do mesmo.
- 3. Carreiras Insatisfatórias: Imagine que você esteja em uma carreira que não lhe traz satisfação. Você não gosta do trabalho que está fazendo, não se sente valorizado e não vê um futuro promissor. No entanto, você passou anos se formando e subindo na carreira, então tem medo de “desperdiçar” todo esse tempo e esforço. Então, você continua na carreira, mesmo que esteja lhe causando estresse e insatisfação. Isso é semelhante ao curdo que continua a comer a pimenta, apesar do desconforto, porque ele investiu seu dinheiro nela. Aqui, o compromisso interno com a carreira pode mantê-lo preso em um trabalho insatisfatório.
Aprisionamento e a falácia dos custos irrecuperáveis
Portanto, a “falácia dos custos irrecuperáveis” está em jogo em cada um desses exemplos. Isto reflete um viés cognitivo onde estamos relutantes em abandonar um curso de ação no qual investimos. Mesmo que tal decisão esteja nos causando dor ou desconforto. Além disso, nossos “compromissos internos” – as promessas que fazemos a nós mesmos – podem nos manter presos em comportamentos prejudiciais. Reconhecer essa tendência em nós mesmos é o primeiro passo para superá-la e fazer escolhas mais saudáveis e benéficas para nós mesmos. Porém, somente reconhecer não é suficiente.
A Teoria do Aprisionamento
A teoria do aprisionamento é um conceito da psicologia moderna. Contudo, ecoa nas observações de George Gurdjieff. Ela sugere que as pessoas tendem a persistir em situações ou projetos prejudiciais porque têm medo de admitir o fracasso ou desperdiçar o investimento que fizeram. Esta teoria, baseada em uma ampla gama de pesquisas empíricas, fornece um quadro para entender e explicar o comportamento que Gurdjieff descreveu em sua história.
Existem vários estudos acadêmicos e livros sobre a teoria do aprisionamento. A teoria sugere que os seres humanos tendem a se manter em situações ou projetos mesmo quando há sinais claros de que persistir neles não será benéfico. Esta tendência de se apegar a situações prejudiciais é um fenômeno que se manifesta em várias áreas da vida, como relacionamentos e empregos.
Quando conhecer não é suficiente
Um exemplo marcante da teoria do aprisionamento é a história do psicólogo americano Jeffrey Z. Rubin. Rubin. Ele, um especialista em resolução de conflitos e alpinista experiente, morreu ao tentar escalar uma montanha em condições adversas. Ainda mais, isso aconteceu apesar dos avisos de um aluno que estava com ele e o abandonou por ele mesmo não estar seguindo as próprias instruções de segurança dadas ao iniciante. A ironia é que Rubin foi pioneiro no desenvolvimento da teoria do aprisionamento, um conceito que ele, infelizmente, não conseguiu aplicar em sua própria vida.
Parece que o fato de Rubin estar preso na tentativa de atingir a meta de escalada dos 100 picos mais famosos o fez vítima do aprisionamento de suas próprias decisões. Mesmo que tal decisão fosse totalmente contrário ao seu conhecimento da situação de risco presente naquele momento e contra seu conhecimento sobre esse tipo de armadilha cognitiva. Isso não o fez livre da decisão de perseguir atingir o pico sob condição meteorológica severa adversa que lhe levou a óbito.
Todavia, esse fenômeno se manifesta em várias áreas da vida. As pessoas tendem a persistir em situações insatisfatórias por medo de admitir o fracasso ou desperdiçar o investimento que fizeram. O aprisionamento pode afetar decisões em grande escala como um presidente de uma empresa que adota uma estratégia errada ou de um presidente de uma nação em uma condução de conflitos e guerras. Afinal, os líderes continuam conflitos devido ao “custo afundado” de vidas perdidas e ao medo da reação do público. Isso porque “recuar” é passar por um julgamento moral coletivo. O que para um político pode se tornar inaceitável perante seu “público”.
Sentimos menos prazer com o ganho que com perdas
Um dos fatos observados é que sentimos menos prazer com os ganhos que obtemos na vida que com as perdas. Assim, se ao vender ganhamos 10% em um mês com uma ação, mas, ela valoriza 30%, sentimos que “perdemos dinheiro”.
São vários vieses cognitivos que contribuem para o aprisionamento, incluindo a falácia dos custos irrecuperáveis, a omissão, a preferência pelo status quo e a aversão a perdas.
Quem perdeu e quem ganhou, perdeu todo mundo
A teoria do aprisionamento é reforçada por uma série de vieses cognitivos que distorcem nossa percepção e tomada de decisões. Entre eles, a falácia dos custos irrecuperáveis, a omissão, a preferência pelo status quo e a aversão a perdas são particularmente relevantes.
- Falácia dos Custos Irrecuperáveis – A falácia dos custos irrecuperáveis refere-se à tendência de continuar um empreendimento uma vez que um investimento em dinheiro, tempo ou esforço foi feito. A ideia é que o investimento não pode ser recuperado, então devemos continuar o esforço para não “desperdiçar” o investimento. No entanto, este é um viés cognitivo, pois o dinheiro, tempo ou esforço já gasto não deve influenciar a decisão de continuar se o resultado provável é negativo. Por exemplo, alguém pode continuar assistindo a um filme chato no cinema só porque pagou pelo ingresso, mesmo que provavelmente aproveitasse mais o tempo fazendo outra coisa (quem nunca…).
- Omissão – O viés de omissão é a tendência de julgar ações prejudiciais como piores ou menos morais do que omissões equivalentes (inatividade). Em outras palavras, somos mais propensos a manter o status quo (omissão) do que a tomar uma ação que pode ser vista como causadora de um resultado negativo. Isso pode nos levar a permanecer em situações prejudiciais em vez de tomar medidas para mudar. Por exemplo, uma pessoa pode permanecer em um emprego insatisfatório por medo de que deixar o emprego seja visto como um “erro”, mesmo que a inação esteja causando estresse e infelicidade.
- Preferência pelo Status Quo – A preferência pelo status quo é um viés cognitivo que favorece o estado atual de coisas. As pessoas tendem a resistir à mudança e preferem manter suas situações atuais, mesmo quando a mudança pode ser benéfica. Isso pode levar ao aprisionamento, pois as pessoas podem se apegar a situações, relacionamentos ou comportamentos prejudiciais simplesmente porque são familiares. Por exemplo, alguém pode continuar morando em uma casa que requer muitos reparos caros, simplesmente porque “é assim que sempre foi”.
- Aversão a Perdas – A aversão a perdas é a tendência de preferir evitar perdas a obter ganhos equivalentes. Em outras palavras, a dor de perder é psicologicamente cerca de duas vezes mais poderosa do que o prazer de ganhar. Isso pode levar ao aprisionamento, pois as pessoas podem evitar tomar ações que possam resultar em perda, mesmo que a inação possa resultar em uma situação pior. Por exemplo, um investidor pode se recusar a vender uma ação que está perdendo valor, na esperança de que ela se recupere, em vez de cortar as perdas e investir em uma opção mais promissora.
Esses vieses cognitivos podem agir como barreiras à mudança e à tomada de decisões racionais, contribuindo para o aprisionamento. Reconhecer e entender esses vieses é um passo importante para evitar a armadilha do aprisionamento e buscar a liberdade e a autenticidade em nossas vidas.
Evitando o Aprisionamento: o que podemos fazer?
Então, como podemos evitar cair na armadilha do aprisionamento? Tanto Gurdjieff quanto a psicologia moderna oferecem algumas sugestões.
Gurdjieff propôs uma série de práticas, incluindo a auto-observação, a lembrança de si mesmo e o trabalho em grupo, para ajudar as pessoas a se tornarem mais conscientes de seus padrões de comportamento e a fazer escolhas mais autênticas e livres.
A psicologia moderna sugere técnicas como a terapia cognitivo-comportamental, que ajuda as pessoas a identificar e desafiar pensamentos e comportamentos prejudiciais, e a atenção plena, que promove a consciência do momento presente e a aceitação de experiências internas sem julgamento.
Evitar as armadilhas cognitivas descritas acima requer autoconsciência, reflexão e prática. Aqui estão algumas estratégias que podem ajudar, incluindo a perspectiva do Quarto Caminho:
- 1. Conscientização e Educação: O primeiro passo para evitar essas armadilhas é estar ciente delas. Aprender sobre vieses cognitivos e como eles influenciam nosso pensamento e comportamento pode nos ajudar a identificá-los quando ocorrem. No Quarto Caminho, isso é referido como “lembrança de si mesmo” – um estado de consciência aumentada onde somos mais conscientes de nossos pensamentos, sentimentos e ações.
- 2. Prática de Presença: A atenção plena, ou presença, é a prática de prestar atenção ao momento presente de maneira não julgadora. Isso pode nos ajudar a nos tornarmos mais conscientes de nossos pensamentos e sentimentos, permitindo-nos reconhecer quando estamos caindo em vieses cognitivos. No Quarto Caminho, isso é frequentemente praticado através de exercícios de meditação e atenção plena.
- 3. Tomada de Decisão Reflexiva: Antes de tomar uma decisão, especialmente uma importante, reserve um tempo para refletir. Pergunte a si mesmo se algum dos vieses cognitivos mencionados pode estar influenciando sua decisão. Considere as opções de diferentes perspectivas e tente imaginar as possíveis consequências de cada uma. No Quarto Caminho, isso é chamado de “consciência dividida”, onde observamos nossos pensamentos e sentimentos internos e externos ao mesmo tempo.
- 4. Busque Feedback e Perspectivas Diversas: Outras pessoas podem ser capazes de ver coisas que não conseguimos ver em nossas próprias situações. Buscar feedback e perspectivas diversas pode nos ajudar a identificar vieses cognitivos e a tomar decisões mais informadas. No Quarto Caminho, isso é encorajado através do trabalho em grupo e da troca de experiências e percepções.
- 5. Pratique a Flexibilidade Cognitiva: A flexibilidade cognitiva, ou a capacidade de mudar nossos padrões de pensamento em resposta a novas informações, pode nos ajudar a evitar vieses cognitivos. Isso pode envolver a prática de pensar em alternativas, questionar suposições e estar aberto a mudar de ideia. No Quarto Caminho, isso é visto como parte do processo de “morrer para o passado”, estar aberto a novas possibilidades e tornar-se um ator.
- 6. Cuidado com o Custo Afundado: Lembre-se de que o dinheiro, tempo ou esforço já gasto em algo é irrelevante para as decisões sobre o futuro. Em vez de se concentrar no que já foi investido, concentre-se no que é melhor para o futuro. No Quarto Caminho, isso é parte de “não se identificar” com nossos pensamentos, sentimentos e ações passadas. O que já foi perdido não mais pode voltar.
Evitar vieses cognitivos e armadilhas de pensamento não é fácil, mas com consciência, prática e uma abordagem reflexiva à tomada de decisões, podemos melhorar nossa capacidade de pensar de maneira mais clara e objetiva. A perspectiva do Quarto Caminho oferece ferramentas adicionais para essa jornada de autodescoberta e transformação.
Conclusão
A história do curdo de Gurdjieff e a teoria do aprisionamento nos oferecem uma visão valiosa da natureza humana e das armadilhas que podem nos impedir de viver de forma autêntica e livre. Ao explorar essas ideias e praticar técnicas de autoconsciência e autolibertação, podemos esperar evitar a armadilha do aprisionamento e buscar uma vida de maior liberdade e autenticidade.
Para concluir, é crucial abordar uma questão complexa que surge quando consideramos a teoria do aprisionamento e a anedota do curdo: como distinguir entre situações em que devemos persistir e aquelas em que devemos desistir? Afinal, se persistir pode ser uma armadilha cognitiva de aprisionamento, não persistir em nossos objetivos também pode nos levar a um impasse. Pois, quem não persiste não progride.
Avaliar se devemos persistir ou desistir é um desafio que requer uma avaliação cuidadosa e reflexão. Uma maneira de fazer essa avaliação é considerar o custo-benefício da situação. Se os custos (emocionais, financeiros, de tempo, etc.) de persistir superam os benefícios potenciais, pode ser hora de reconsiderar. Por outro lado, se os benefícios potenciais superam os custos, pode valer a pena persistir.
Outra consideração importante é se a situação ou o comportamento em questão está alinhado com seus valores e objetivos pessoais. Se persistir em uma situação está levando você mais perto de seus objetivos e está alinhado com seus valores, pode valer a pena o esforço. No entanto, se a situação está em desacordo com seus valores ou está impedindo você de alcançar seus objetivos, pode ser melhor desistir.
Além disso, é importante prestar atenção aos sinais de alerta. Se você está se sentindo constantemente esgotado, estressado ou infeliz, esses podem ser sinais de que é hora de reconsiderar. A persistência não deve vir à custa de sua saúde mental ou física.
Obter a perspectiva de outras pessoas também pode ser útil. Eles podem ser capazes de ver coisas que você não consegue e podem oferecer conselhos valiosos. E lembre-se, desistir de algo que não está funcionando não é um sinal de fracasso, mas de aprendizado e crescimento. Às vezes, a decisão mais corajosa e saudável que podemos tomar é desistir de algo que não está nos servindo bem.
Não há ganhos sem sofrimento?
Quanto à anedota do curdo, é verdade que o sofrimento pode levar ao aprendizado e ao crescimento. No entanto, o sofrimento desnecessário ou prejudicial não é benéfico. A chave é encontrar um equilíbrio entre a persistência saudável que nos leva em direção aos nossos objetivos e a persistência prejudicial que nos mantém presos em situações ou comportamentos que não nos servem bem.
Em última análise, a anedota do curdo e a teoria do aprisionamento nos lembram da importância de estar conscientes de nossos comportamentos e das motivações por trás deles. Ao fazer isso, podemos fazer escolhas mais informadas e saudáveis, evitando as armadilhas do aprisionamento e vivendo de acordo com nossos valores e objetivos.
Ótima semana de estudos para vocês
Lauro Borges
PS: esse artigo foi inspirado por essa publicação