No começo era o nada e então veio o verbo. Essa é a primeira frase do livro mais conhecido do ocidente. Já percebeu como muitas coisas parecem surgir no nada? Algo não existia e agora está perante a sua presença e atenção. O nada e o vazio talvez seja a memória mais profunda que toda a humanidade carrega. Você não existia como um corpo até a passar a existir. Mas onde estávamos antes desse nada, deste vazio?
O universo é feito de vazios
O conceito sobre o nada foi fruto de muitas investigações filosóficas, religiosas e espirituais. Mas nada foi tão revolucionário quanto o desenvolvimento científico que conseguiu desvendar as propriedades atômicas da matéria. Assim como a teoria geral da relatividade que permitiu descrever um modelo científico da criação do universo. Contudo, a melhor compreensão científica atual não se difere das milenares especulações cosmológicas das grandes tradições religiosas. Afinal, o universo nasce do nada!? Isso ainda é uma questão sem respostas.
O modelo geral da teoria da relatividade é capaz de voltar a infinitésimos de segundos da criação do universo. Porém, ninguém explica o que existia antes de tudo existir. As teorias científicas tentam não reduzir a uma mera explicação metafísica de que antes de existir o nada só existia Deus. Apesar de ser uma boa e possível explicação, ainda assim temos a curiosidade de compreender o que é isso. Queremos compreender o que é Deus.
No entanto, uma coisa podemos dizer: Talvez esse tudo seja Deus. Esse grande campo cósmico e infinito. Porém, não saber o que é Deus não altera o fato de possuirmos uma capacidade de intuir sobre o nada, o vazio e sua ligação com o todo. Se não tivéssemos tal memória e intuição, provavelmente não seriamos atraídos pela necessidade de conhecer as estrelas e planetas. Por que dispendemos bilhões em dinheiro e tempo estudando o cosmos? Talvez porque sabemos sempre, no fundo de nossa alma, que fazemos parte de um grande esquema cósmico. Toda a matéria participa dessa jornada de criação e destruição. Tudo busca a compreensão dessa unidade e segue um ritmo de total harmonia.
Do nada ao todo
Todos os elementos do universo surgiram desse único evento singular. Do “nada” tudo surgiu. Portanto, o nada e o tudo são somente uma expressão observável da mesma fonte universal. Porém, tal existência não é possível sem uma determinada ordem e harmonia. Ainda mais que todo o potencial criativo também foi liberado juntamente com a criação de tal universo observável. Assim, é desse potencial criativo que tudo pode e deve ter o direito de expressar.
Entretanto, apesar de pertencermos ao todo, ainda é dado o direito da existência individual. Isso ocorre até mesmo no menor dos elementos das subpartículas atômicas. Tudo forma o todo e só há existência dentro desse todo. Logo, tudo pertence a esse todo. Assim, não há separação entre o vazio, a existência, o indivíduo e o todo. E é dessa forma que todo o universo percebe a harmonia. Ainda mais, é isso que chamamos de Amor divino. O amor que reflete a tolerância e a caridade. Amor esse que doa, permite e participa de tudo.
Este é o verdadeiro princípio da essência no ponto 9 do Eneagrama. Assim como é a verdadeira personalidade de quem neste ponto cristaliza no processo de crescimento. Como iremos ver ao longo dos próximos artigos, cada ponto do Eneagrama representa uma história dentro do raio da criação. O motivo pelo qual a personalidade se cristaliza em um ponto e não em outro não é totalmente conhecido. Pode-se especular que isso se deve a missão de vida de cada um. Porém, pode ser simplesmente por questões hereditárias e genéticas. O fato é que existe uma distribuição equalitária entre os tipos de personalidade ao longo do Eneagrama. É como se a própria personalidade também tivesse de obedecer a uma lei universal da qual tudo se desdobra em um processo de nove partes (ninefoldness).
Em outras palavras, cada pessoa detém uma parte de toda a história. Assim, é garantido que os choques externos necessários são garantidos para formar o crescimento da essência. Então, o crescimento se torna possível com o trabalho em grupo.
Separe o que lhe é falso
A falsa personalidade nasce como fruto da percepção de que tudo o que ocorre no mundo e para consigo é fruto da percepção do indivíduo. Assim, o centro de tudo passa a ser o ego e não mais a percepção dessa conectividade e participação de uma escala cósmica da vida. Dessa forma, o auto-amor toma o lugar do verdadeiro Amor Divino que tudo transpassa. O “coitadismo” ou autopiedade toma o lugar da caridade e fraternidade. Logo, a falsa personalidade toma o lugar da verdade objetiva. A auto-ilusão toma o lugar da razão e o mundo passa a ser visto e moldado de acordo com o viés cognitivo que se forma.
A questão da falsa personalidade vai muito além da passividade associada ao ponto 9 do Eneagrama. Pois o fato é que não há personalidade passiva perante o mundo. Afinal, a personalidade se veste da história que quer representar. Assim, no caso da cristalização no ponto 9, será sempre ativa dentro de um papel que requer uma total identificação com uma passividade. Como em todos os tipos, é este mecanismo que retroalimenta a necessidade de auto-amor e autopiedade.
Nada lhe faz sofrer desnecessariamente além de você mesmo
Em suma, a falsa personalidade sofre involuntariamente buscando uma contínua retroalimentação. Por outro lado, a personalidade verdadeira compreende, pela força da essência, que amar é sofrer. Assim, o sofrimento é consciente e voluntário. Um sofrimento ciente de que a vida é um todo harmônico composto por tensões. O sofrimento não passa de uma identificação a um polo da tensão. E toda a tensão será resolvida sempre pela misteriosa força invisível do vazio. Afinal, é desse vazio, desse nada, que surge uma resolução milagrosa que dissolve tanto um polo quanto outro em uma nova resolução.
Quando a falsa personalidade se confunde com esse mecanismo cósmico e superior, essa passa a acreditar que deve agir infinitamente para manter tal harmonia. Como se tal falsa personalidade fosse a fonte verdadeira dessa força harmônica universal. A verdadeira personalidade está ciente de sua participação nesse jogo cósmico e sabe que lhe cabe somente realizar o que lhe é necessário. Isso significa ter consciência de ser o que se é. Ou seja, de gostar do que se gosta, de expressar o que quer, da forma como quiser.
Sua personalidade é sua expressão
Todo e qualquer problema que criamos no mundo não é de responsabilidade de nossa personalidade. Pouco importa o seu tipo e seu viés. Afinal, é somente uma expressão de um todo que faz parte de um esquema maior. Ainda mais, é muito salutar que seja assim. É essencial que seja assim. Caso contrário o mundo estaria fadado a uma polaridade que se esvaziaria em si mesmo.
No entanto, como toda e qualquer falsa personalidade, o tipo 9 sofre por identificação. O trabalho com o Eneagrama da personalidade sempre cai em uma armadilha de achar que se deve alterar a personalidade. Isso é impossível. O que se altera é a presença da falsa personalidade em sua vida. A falsa personalidade que é inútil e traz sofrimentos desnecessários. É daí que surge o grande ladrão de energia que não permite a essência crescer e desenvolver em todo o seu potencial.
Tensões e polaridades sempre existirão
Assim como tudo no universo, sempre teremos polaridades em nossa personalidade. Por muitas vezes essas polaridades são associadas a virtudes superiores e inferiores. No entanto, isso é errado, principalmente a conclusão errônea de acreditar que o superior é melhor que inferior. Daí dizer que a “pessoa tipo 9” deve combater sua indolência e preguiça é o mesmo que pedir para eliminar uma de suas polaridades. Ao contrário, seria mais útil afirmar sua preguiça e indolência. Portanto, o que sempre importa é estar o mais consciente de suas próprias decisões e tornar-se responsável por isso.
Quando compreendemos que temos polaridades, podemos compreender que não são essas polaridades que determinam a direção da ação. Por vezes estar em uma polaridade inferior poderá ser até uma maneira de evitar um mal maior. Na verdade, o que muda é compreender sua falsa personalidade. Afinal, é isso que lhe impede de mover livremente dentro das polaridades necessárias demanda por cada momento da vida. É isso que lhe dá a compreensão do que é o sofrimento voluntário da vida.
A liberdade de ser nada
Eu sou um nada. Isso é sempre mais fácil dizer que verdadeiramente ser. E não é exclusividade a nenhum tipo de personalidade. O universo é feito de um “milagroso nada”, de espaços vazios. Vivemos um tempo ridiculamente infinitesimal perante o tempo do universo. Nossa compreensão é mínima e somente suficiente para dar uma imensa angústia de que estar vivo é estar flutuando sem destino em um vazio infinito. Contudo, tais sentimentos não são exclusividade de nenhum tipo de personalidade. E talvez nem seria do próprio tipo 9 se os criadores de tal sistema não tivessem desmembrados tantas questões universais em “caixinhas”.
Porém, se lembrar que tudo veio do nada e que o Grande Infinito Criador Absoluto também vem do nada, lembrará que viemos e retornaremos sempre para a mesma fonte. Assim, não há problema nenhum em fazer parte desse nada. Este é um nada acolhedor, cheio de compaixão e altruísmo. A personalidade vive o seu momento e compreende sua função. Entende que é somente uma função de tantas outras que formam o todo da psique humana. Dessa forma, não há sofrimento desnecessário. A personalidade faz o que precisa fazer. Ao contrário da falsa personalidade que insiste em desobedecer.
Desobediência, este é o problema fundamental.
É essa “desobediência a Deus” que se torna o primeiro “pecado original da humanidade”. Ainda mais, a desobediência que mantém a essência reprimida enquanto a falsa personalidade é alimentada. Desobedecer a Deus é deixar de fazer o que precisa ser feito. Antes de tudo, é deixar de seguir a lei da harmonia universal. Tal distúrbio não é exclusividade do tipo 9 e está presente como formação da falsa personalidade de todos os tipos: Não obedecer sua própria consciência.
O problema da falsa personalidade do tipo 9 não é sua preguiça ou indulgência. Não há problema nenhum em ser preguiçoso contanto que isso não impeça de fazer o que lhe é necessário. Assim como próprio Deus comanda que o domingo seja usado como dia de descanso. Certos problemas da personalidade, independentemente de ser essa falsa ou não, estão muito mais relacionados a julgamentos da cultura de um povo. Afinal, a personalidade faz parte das funções inferiores. O problema reside quando essa função inferior está sendo usada no lugar errado. Logo, toda personalidade é uma expressão da vida e deve ser respeitada pela própria lei do Amor Divino e da compaixão.
O que falta a todos os “tipos” do Enegrama é a capacidade de desenvolver seus centros emocionais e intelectuais superiores. Contudo, isso começa pela separação do que lhe é falso de sua personalidade.
Fica a sugestão de explorar mais sobre o tema do nada. Sugiro que possa começar por aqui.
Uma ótima semana de estudos para vocês,
Lauro Borges