Devemos realizar com cuidado qualquer trabalho psicológico que dispomos a empreender. Afinal, por mais desorganizada que esteja a nossa psique, ainda assim é um aparato que nos mantém vivos e funcionais. Da mesma forma, não foi fruto de uma única ação o estado em que chegamos . Isso é o resultado de anos de descuido, falta de atenção, influências familiares e ciclos culturais. Todo esse descuido que nos levou a um distanciamento da verdadeira natureza do ser humano.
Então, não espere resultados fantásticos e milagrosos acontecendo rapidamente. Porém, isso não significa que não há alguns resultados rápidos para colher. Por vezes temos comportamentos tão distorcidos que já não mais aguentamos o mesmo. No entanto, o trabalho de transformação vai além de mudar comportamentos. Está além de mudar hábitos. Portanto, exige muita força de vontade e dedicação além da mera vontade imediata em aliviar a dor momentânea. Além de se ver inapropriado para uma situação atual. Ou ainda, além de se perceber erros do passado e querer se livrar dos sentimentos de frustração e culpa.
O Trabalho é como uma nuvem de pó que lentamente vai se sedimentando e se compactando até virar uma rocha sólida que suporte o peso de uma estrutura. É como um sereno suave que cai sobre montanhas e vai acumulando pelos vales até formar um riacho. Nada vai acontecer de uma só vez. Ao contrário, é mais provável você se afogar em águas profundas de sua mente, quando pego em um dilúvio interno, sem antes ter preparado sua própria arca.
Vemos pessoas que julgamos ser bem sucedidas em vários planos, incluindo o espiritual. No entanto, não sabemos exatamente o que levou tal pessoa a chegar em seu patamar. Pode ter sido sorte, incentivos familiares corretos e oportunidades que o acaso sempre cria. Claro que o esforço e interesse pessoal também deve ser considerado. Porém, o que vemos externamente pode não representar o ser de uma pessoa.
Tal pessoa pode ser simplesmente um reflexo condicionado de comportamentos mecânicos dos quais não refletem um elevado nível do ser. Assim, todos temos aptidões que podem ser treinadas para executar tarefas, rotinas e se comportar de determinada maneira para obter um melhor resultado. Isso faz parte da capacidade de se impor disciplina. Todavia, essa não é uma característica só do humano. Os animais também treinam seus filhotes para agir conforme o comportamento necessário. Outros animais já carregam suas programações biológicas para agir conforme sua natureza. Então, é importante perceber que muito de nosso sucesso tem mais a ver com o acaso, condições pré estabelecidas e herdadas do que com nossa capacidade de realizar. Já não sabemos agir conforme a nossa natureza.
Porém, o ser humano é um elo perdido entre um animal e um deus. Sabemos que possuímos um erro, uma necessidade de correção de rota, um chamado. No entanto, muitos usam esse “algo que sempre busca” para fora de si. Precisam de regras, conformidades, limites, referências. Dessa maneira, religiões, movimentos de massa políticos e sociais tornam-se encantadores e entorpecentes ao mesmo tempo. Assim como a busca pela “espiritualidade” também é uma excelente forma de se alienar confortavelmente. O ponto em comum de tudo isso? Retirar a responsabilidade de seus ombros por sua busca e ocupar o vazio existencial insaciável com “coisas”. Assim, essas “coisas” podem ser ideias, conceitos, ilusões, dinheiro, bebidas, sexo, coleções. Ou seja, algo que lhe traga um aparente conforto ilusório.
Pois bem, entenda que nada pode acabar com esse vazio. Afinal, esse vazio é o último mistério. É o que nos leva a buscar nossas origens. “No princípio era somente o nada e do nada surge o verbo”. Então nunca vamos saber o que há além desse vazio. Esse é o limite do conhecimento humano. Pode-se dizer que há céus, infernos, planetas, outros seres nessa galáxia. Porém, tudo isso ainda está preso a uma forma e fonte original. Gurdjieff diz que somos seres triunos e aí reside nosso máximo potêncial. Além disso há somente o Todo Absoluto.
Assim, crescer espiritualmente é se tornar cada vez mais responsável por carregar o seu próprio sofrimento. É aprender a sofrer sem se apegar a sua cruz. Em outras palavras, é sofrer sua existência e não sofrer pelo “sofrer da existência”.
Veja que o Trabalho pede para observar a si e não mudar a si. Quando você entende que não precisa agir para mudar a si é que começa o seu trabalho verdadeiro. Porém, isso deve vir acompanhado com a vontade de ver e ser o que você é por completo. Assim, isso lhe mostra sua verdade por completo. Com isso, somos capazes de aprender verdadeiramente pela própria experiência. No entanto, como agimos normalmente? Totalmente desconectados, não presentes, não atentos ao que fazemos. Afinal é mais cômodo ignorar as contradições do que ter de enfrentá-las a cada momento
Mas se não estamos no Trabalho, não aprendemos pela própria experiência. Isso acontece porque uma grande parte de nós não quer mudar, não quer ser responsável e não quer tocar o vazio de sua própria existência. Não quer se esforçar, prefere acreditar na sua capacidade de “fazer” e até acredita que já faz. Vivemos imersos em ilusões, sonhos e imaginação.
Você não precisa criar nenhuma nova situação ou agir para mudar a si. Qualquer tentativa nesse sentido será apenas uma tentativa de corrigir comportamentos ou impor novas ilusões. Isso não mudará o que você é. Essa constante troca de imagens idealizadas e perfeitas não muda o que você é. Isso só lhe traz um conforto momentâneo que se desfaz no primeiro choque de realidade. Pense que você é um boneco em um jogo de RPG. Bonecos de avatares em um videogame. Você pode ter escolhido o guerreiro, a curandeira, o mago, a arqueira, a amazona. No entanto, esses são somente o PERSONAgem que você escolheu ou lhe foi dado para participar desse jogo da vida.
Podemos trocar sua cor, suas vestes, seus enfeites. Nada disso muda a essência do que esses personagens são. Porém, o seu personagem nesse jogo está jogando de forma automática enquanto você dorme. Você esquece que isso é um jogo e não um filme. Você esquece de quem deveria estar dando comando ao seu personagem. Portanto, a primeira coisa a se fazer é aprender sobre seu personagem. Precisamos observar o personagem. Não precisamos mudar de personagem. Mudar o personagem não vai mudar nunca quem está comandando o personagem.
Seu personagem pode e deve aprender novos truques. Por vezes, deve-se desapegar de uma espada para carregar um escudo. Novos eventos lhe trarão novas habilidades e capacidades. O que mais importa é o que você consegue aprender e apreender com esse personagem. Isso é o que realmente lhe informa o que você é. É isso que lhe informa sobre você. Não é sobre a cor do personagem, suas roupas e “estilo”. É o que lhe move, suas motivações, desejos, sentimentos e ideias. Tanto as partes boas quanto as partes ruins.
Nenhum discurso pré-programado lhe ajuda nessa tarefa de autoconhecimento. Somente a vontade, capacidade de suportar seu sofrimento e honestidade pode revelar o que já está presente em seu inconsciente. Sim, não há nada que já não esteja aí. Inclusive o vazio. Não há nada a temer, nada a se preocupar. Porém, o entendimento disso não lhe será dado de graça. Isso vem como resultado de anos de trabalho, anos de auto-observação. Tudo fruto do tempo e acúmulo dessas energias mais sutis. Somente assim se consegue criar força interior para tornar-se o verdadeiro jogador. E quando isso ocorre é que começamos a agir no mundo como verdadeiros atores. Pois, para agir é necessário estar livre em seu mundo interior.
Então, a grande dificuldade do Trabalho começa em não perceber que você não é o personagem do joguinho. Estamos tão associados, tão identificados a esse personagem que já esquecemos do que realmente somos. Assim, quando as pessoas entram no trabalho colocam seu personagem para agir. Colocam seus personagens para se “espiritualizar”, para observar, para transformar. Consequentemente, falham miseravelmente. Isso ocorre porque estão executando suas tarefas do Trabalho pela perspectiva errada. Pense sobre isso. não haverá resultados sólidos enquanto não perceber qual parte sua está engajada no Trabalho. Você não pode exigir que seu personagem faça isso por você. Assim como a responsabilidade não é desse personagem. A responsabilidade é de quem está no controle.
Espero com esse texto te ajudar a perceber de qual perspectiva você vem trabalhando. Perguntas e comentários são muito bem vindos.
Uma ótima semana de estudos para todos vocês.
Lauro