A duas semanas atrás eu propus um exercício de agradecer tudo que lhe acontece na vida, independente de ser percebido como algo bom ou ruim. Muitas pessoas comentaram ser fácil fazer esse exercício quando percebe uma benção. No entanto, agradecer por algo percebido como ruim já é mais difícil. Sim, é verdade que somos acostumados a valorizar tudo que percebemos positivamente como benção. Dessa forma, ficamos felizes e sentimos “especiais” por algo positivo ter acontecido. Muitas vezes até acreditamos que fomos nós que geramos a capacidade de tal fato ter acontecido. Nesse caso, passamos a agradecer a nós mesmos.
A dificuldade de perceber nossos vícios
Dessa forma, o exercício se mostra ainda mais complexo. Afinal, nenhum exercício do Quarto Caminho pode ser executado de forma mecânica. Agradecer sem refletir leva a acreditar que basta desejar e ter “vontade”. Entretanto, quanto maior for essa crença de que se é capaz de fazer, de gerar tudo à sua volta, maior é a frustração. Será maior o ressentimento percebido quando o universo lhe presentear com percepções negativas.
Note que uso a palavra percepção, pois, é difícil julgar se algo momentaneamente percebido é realmente ruim ou bom. Há uma velha história taoísta que diz assim:
“Havia um velho fazendeiro que trabalhou em suas plantações por muitos anos. Um dia, seu cavalo fugiu. Ao ouvir a notícia, seus vizinhos vieram
visitá-lo. “Que azar”, disseram eles com simpatia. “Pode ser”, respondeu o fazendeiro. Na manhã seguinte, o cavalo voltou, trazendo consigo três outros cavalos selvagens. “Que maravilha”, exclamaram os vizinhos. “Pode ser”, respondeu o velho. No dia seguinte, seu filho tentou montar um dos cavalos selvagens, foi derrubado e quebrou a perna. “Que azar” – os vizinhos voltaram a apresentar suas condolências por seu infortúnio. “Pode ser”, respondeu o fazendeiro. No dia seguinte, oficiais militares foram ao vilarejo para alistar jovens no exército. Vendo que a perna do filho estava quebrada, eles passaram por ele. Os vizinhos parabenizaram o fazendeiro pelo bom andamento das coisas. “Pode ser”, disse o fazendeiro.”
O que lhe acontece é bom ou ruim?
Esse conto nos faz refletir que o que percebemos de imediato não necessariamente é uma benção. Assim como não necessariamente é uma punição ou maldição. Todavia, nossa biologia e mente se formou de maneira a valorizar gratificações com sentimentos positivos e prazer. Porém, percebemos o que vai contra a nossa vontade como desprazer e sentimentos negativos. Contudo, tanto esse sentimento “positivo” quanto “negativo” podem ser entendidos como sentimentos negativos do ponto de vista do Trabalho. Conforme expliquei acima, o fato de sobrevalorizar nossas capacidades, acreditando que podemos fazer, cria um mundo de expectativas e frustrações. De outra forma, quanto maior o ego, maior o tombo.
Ao mesmo tempo, Gurdjieff dizia claramente que precisamos ter egos fortes e capazes de realizar. Então, não é que devemos passar a negar que não podemos fazer para tudo na vida. Assim como devemos perceber com alegria o que nos acontece positivamente e entender a frustração do que percebemos de forma negativa. Porém, isso deve ser feito pelo centro emocional superior. É ali que podemos valorizar de forma adequada o que realmente nos é bom e o que perseguimos pela ação mecânica do ego.
Centro emocional e a intoxicação pelos vícios
Conforme alertei, esse exercício não pode ser encarado como um exercício de passividade perante a vida. Não é uma força compensadora as nossas frustrações. É uma força transformadora da percepção do momento. Tudo se altera quando mudamos a maneira que percebemos e julgamos o que acontece ao nosso redor. Nossas reações automáticas são alteradas pela transformação. O fato é que haverá menos energia para desperdiçar no centro emocional inferior quando a energia certa é recebida no centro emocional superior.
Às vezes, essa mudança é tão forte que temos um tipo de “ressaca”. Afinal, ao alterar nossas respostas emocionais, alteramos as respostas físicas e bioquímicas que as acompanham. Por vezes caímos no sentimento de perda de referência ou numa sensação de dependência, de ter de reagir sempre daquela mesma forma. Esse processo de dependência às nossas reações emocionais é muito similar a uma dependência química como alcoolismo. Portanto, não adianta exigir esforços sobrehumanos quando estamos dentro de um processo de desintoxicação. Devemos exigir de nós mesmos um tanto que podemos avançar a cada dia. Então, a velha máxima de “somente hoje” é uma excelente âncora que nos ajuda a relativizar adequadamente o que percebemos. Você pode entender que “somente hoje” eu vou agradecer esse evento ruim que percebo.
Crie uma estratégia para trabalhar seus vícios
Nossa psicologia trabalha melhor com pequenas causas. É assustador quando notamos o tamanho do trabalho de transformação interna necessária para poder atingir um nível decente a ponto de ser digno de se chamar Ser Humano. Contudo, ao trazer para um fragmento de tempo mais próximo, o momento se torna mais gerenciável. Assim como fez o velho agricultor no conto taoísta.
Abaixo faço uma cópia dos 12 passos do Alcoólicos Anônimos. Perceba que álcool é somente uma substituição a emoções negativas do ponto de vista do Trabalho. Portanto, perceba que todos nós somos viciados. Infelizmente, tais vícios do centro emocional inferior não são assim percebidos. Ainda pior, são vícios socialmente aceitos e cultuados. O texto em parênteses contém minhas modificações e comentários do ponto de vista do Trabalho.
Para terminar, medite como você percebe os vícios da vida. Talvez note que só por hoje você pode trabalhar um pouco em você. Só por hoje você venha a perceber que a vida é uma benção, independente do que percebemos. Uma ótima semana a todos e bons estudos!