Você se dispõe a trabalhar em si, a melhorar, a corrigir seus defeitos que nem você consegue tolerar mais. Daí você começa a estudar, a ler e a praticar. No entanto, você nota “quem está lendo, estudando e praticando”? Consegue perceber que toda sua prática acaba sendo direcionada para a mesma fonte causadora de seus problemas? Talvez porque você não notou ainda onde está construindo sua morada. É por isso que Jesus diz a máxima: não se coloca vinho novo em odres velhos.
Vamos analisar essas duas passagens do Mestre Jesus.
Disseram-lhe eles: Os discípulos de João jejuam freqüentemente, e fazem orações; assim também os dos fariseus, mas os teus comem e bebem. Jesus disse-lhes: Podeis fazer jejuar os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Dias, porém, virão, dias em que lhes será tirado o noivo, nesses dias hão de jejuar. Propôs-lhes também uma parábola: Ninguém tira remendo de vestido novo e o põe em vestido velho; de outra forma rasgará o novo, e o remendo do novo não condirá com o velho. Outrossim ninguém põe vinho novo em odres velhos; de outra forma o vinho novo arrebentará os odres, e ele se derramará, e estragar-se-ão os odres. Pelo contrário vinho novo deve ser posto em odres novos. Ninguém que já bebeu vinho velho, quer o novo; porque diz: O velho é bom.
Lucas 5:33-39
Agora vejamos essa outra passagem:
24. Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as observa, será comparado a um homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha.
Mateus vii
25. Desceu a chuva, vieram as correntes, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela não caiu; pois estava edificada sobre a rocha.
26. Mas todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as observa, será comparado a um homem néscio, que edificou a sua casa sobre a areia.
27. Desceu a chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos e bateram com ímpeto contra aquela casa, e ela caiu: e foi grande a sua ruína.
Na primeira passagem sobre o odre, podemos entender analogamente o vinho como sangue e espírito. O sangue é o que nos dá vida. Sem sangue não temos vida, tornamos matéria inanimada. O vinho novo é um espírito novo, um novo entendimento. E esse espírito deve ser recebido em outro corpo, outro local, outros centros. De uma outra forma, se alguém tenta colocar sua alma dentro de sua personalidade, corre grande risco de “rasgar o odre velho”. Ou seja, temos um “corpo psíquico” que contém um vinho velho, a personalidade. E esse vinho é bom. Porém, não se pode misturar os vinhos. Assim, coloque o que é da personalidade no velho odre da personalidade. Além disso, desfrute desse seu ser. Porém, seu vinho novo (um novo espírito) deve estar em um novo corpo (um novo odre).
O Mestre Jesus deixa ainda mais claro na segunda passagem quanto a necessidade de ouvir, interpretar e entender o que ele diz para não ser comparado a um homem néscio. Ser um homem néscio é ser desprovido de conhecimento, de discernimento, estúpido, ignorante, não ter aptidão ou competência. Enfim, ser incapaz, inepto.
Porém, o que acabamos fazendo quando recebemos o conhecimento do Trabalho? Onde o depositamos? Certamente não se faz o que foi instruído a fazer. No entanto, veja o drama que vivemos. Precisamos aprender e construir uma nova morada (um novo corpo) para receber um novo espírito. Só que não sabemos onde fica isso. Além disso, fazer errado vai piorar as coisas! Para tanto, precisamos ter compreensão. E como ter compreensão de algo que não se vê, não se toca e não se percebe externamente?
Somente tem compreensão aquele que possui a “mente”, diz o hermetista. Porém, como vou construir a “mente”? Uma coisa muito verdadeira é que o Trabalho é mais inteligente do que nós. O Trabalho é mais sábio do que nós. Precisamos confiar mais no que se diz no Trabalho e simplesmente fazer o que podemos fazer. Devemos não tentar fazer o que não se pode fazer. E a grande verdade que aprendi com os ensinamentos de Gurdjieff é que não podemos fazer. Não me canso de dizer isso. Não digo isso a você nobre leitor e leitora. Digo a mim. Esse aqui que parece não se cansar de fazer o que não se deve fazer.
O que posso fazer é sempre me observar e me esforçar para não me julgar. Aceitar que vou cometer muitos erros. Vou colocar vinho novo no odre velho sim. Não tem como evitar isso. Porém, se eu estiver me observando aprendo comigo. Sem me julgar, poderei compreender o que significa tais palavras. As palavras ganham materialidade com minhas práticas certas e erradas. Deixam de ser abstrações mentais que misturam com minhas fantasias e ilusões. A realidade da matéria é verdadeiramente cruel. Não se importa se não vejo uma parede, porém, a mesma está lá firme em seu lugar. O que sentimos no corpo mostra o que está realmente acontecendo. Por isso, só existe auto-observação verdadeira quando observamos os três centros concomitantemente.
Note que criamos um hábito de se preparar para uma situação. Dizendo a si que não irá mais repetir o comportamento “tal” que não mais deseja fazer. Porém, essa não é a abordagem certa. O que devemos fazer não é tentar não ter um comportamento “tal”. O que devemos fazer é nos esforçar em “estar lá”, no momento em que manifestamos o comportamento “tal” e nos ver tropeçar. Isso sim é muito mais difícil. Qualquer um pode interromper um comportamento por cinco minutos se quiser. Porém, estar presente perante o que lhe desagrada em ti é uma tarefa monstruosa.
Portanto, é muito difícil abandonar a ideia de que posso mudar meu comportamento externo. Minha personalidade foi formada por muitos anos e repetições. Simplesmente não posso mudá-la assim. Pior ainda, não é importante mudá-la. O que é importante é que algo real cresça e reconheça a personalidade pelo que é. Ao não tentar interferir com isso, podemos mudar por conta própria. Isso acontecerá no momento que esse Eu verdadeiro se cansa de ceder por completo. Então, há algo que precisa crescer. Assim, seu comportamento externo mudará até certo ponto. Porém, não podemos lidar com isso pelo ponto de vista errado.
A realidade e a experiência causam a mudança. E não temos ideia de como. Porém, a prática contínua altera a maneira que estamos identificados com nossos personagens. Assim, a mudança ocorre automaticamente. Todavia, nunca da maneira que pensamos. Se temos um comportamento que não é inadequado ou prejudicial, podemos repeti-lo o quanto quiser. Contanto que se coloque ciente disso ao mesmo tempo. Somente quando nos colocamos cientes disso, de sua importância, é que podemos manter parte da força que sai de dentro de nós.
Talvez você note também que há momentos que sentimos uma força querer colocar a auto-observação para “dormir”. São esses momentos que devemos tentar estar mais acordados. Dessa forma, aquele comportamento que não queremos mais não irá se expressar tanto assim. No entanto, a ênfase está em estar mais acordado, em estar mais presente e vivendo sua totalidade. Mesmo que não seja uma totalidade agradável sempre.
Termino com a frase da senhora Adie, pupila de Gurdjieff e professora de seus métodos.
“Nossa maior dificuldade é que dormimos o tempo todo. Temos que começar a acordar gradativamente, Então, ter momentos mais longos de vigília, momentos mais conectados. É muito difícil, mas não totalmente impossível. Posso ser melhor do que sou. Pouco a pouco, preciso ter mais do que tenho. Então, sempre sou pego despreparado. Acho que estou desempenhando um papel muito errado. Por exemplo, a arrogância é muito inadequada e eu durmo em sua presença. A ideia, claro, seria saber qual o papel que eu tenho que desempenhar em qualquer situação e como desempenhá-lo. Para isso eu tenho que estar totalmente consciente. Mas há muitos graus entre isso e o sono. ”
Helen Adie
Por fim, o Trabalho não pode ser ensinado de forma direta. Sempre haverá a exigência do esforço individual em encontrar o local de sua morada. No entanto, essa é uma faculdade que possuímos por direito. Apesar de difícil, podemos sim encontrar nosso solo firme.
Uma ótima semana de estudos para vocês.
Lauro
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