Sobre nós e sobre a vida. 

Se quer realmente viver sua vida, você deve sentir a necessidade de aprofundar a sua compreensão sobre ela. Isso te coloca diante de uma nova demanda. Todavia, cada um terá suas próprias razões pelas quais quer realizar este estudo sobre si. Contudo, parece haver um certo ponto comum a todos. Uma certa relação com uma exigência interior de dar um sentido à própria vida. Um sentido, que com toda a honestidade, ainda não encontramos para ela. Pois, quase tudo o que fizemos até agora foi direcionado exteriormente. O mundo exterior absorveu quase toda a nossa vida. 

Vida interior x vida exterior

Se você avaliar honestamente sua vida, irá notar que a quantidade de tempo gasto voltado para nós mesmos e nossa vida interior é insignificante. Porém, para essa avaliação fazer sentido é necessário saber distinguir o que é a vida interior da vida exterior. Caso contrário, alguém facilmente irá confundir suas interações com as incansáveis demandas de seus vários “eus” com a verdadeira vida interior. Essa distinção não é tão simples. Afinal, em nossa formação, escolarização e atividades diárias, quase tudo foi focado em externalidades. Fomos orientados para o conhecimento vindo de fora. Aprendemos a olhar apenas para fora de nós mesmos e a lidar com pessoas, coisas e circunstâncias externas. Mesmo nossas “orações” acabam sendo dirigidas para fora, para um Deus externo. Aprendemos muito pouco sobre voltar para nós mesmos. Por fim, isso acontece apenas brevemente e com longos intervalos. 

No entanto, querer atingir os próprios objetivos na vida é desejar uma vida com realizações e qualidades distintas das realizações exteriores. Certamente isso não pode existir enquanto a vida exterior constantemente leva tudo embora. Precisamos desenvolver, em nós mesmos, uma presença forte, lúcida, estável. Presença essa capaz de atingir seus objetivos, valendo-se das forças que podem nos ajudar e resistindo às forças da vida que nos arrebatam. Antes de tudo, precisamos ser continuamente e plenamente nós mesmos diante e no meio da vida. A maioria de nossos esforços são quase sempre dispersos, descoordenados, desconexos e completamente inadequados. 

Quando olhamos para dentro, logo descobrimos que um certo autocontrole e “vontade” foram desenvolvidos à custa da luta e da divisão interna. Porém, esse autocontrole imposto leva à rendição às forças opostas. Pior ainda, leva a uma repulsa contra elas. Assim, vivemos dentro de uma ditadura da frágil imagem autoconstruída. No entanto, mesmo esse controle é precário e constantemente questionado. Logo, é necessário iniciar um trabalho de outra ordem se quisermos alcançar algo de real valor neste sentido. Um trabalho muito mais bem estruturado. Não podemos ir mais longe em nossa busca por mais presença nas condições de vida sem antes voltarmos para dentro de nós mesmos. Isso é, sem obter mais experiência e compreensão do que somos e sem desenvolver as qualidades que ainda nos faltam. 

É somente em nós e através de nós mesmos que podemos dar sentido às nossas vidas. Nada além disso pode perceber o que acontece em ti. Mas não aprendemos como nos voltarmos para nós mesmos. Não sabemos absolutamente o que pode ser um trabalho interior para o despertar e o autodesenvolvimento. Da mesma maneira que tivemos de aprender a nos manifestar em nossa vida externa, devemos reconhecer que teremos que aprender o que é trabalho interno. E isso significa aprender que tipo de ação ou atividade isso requer.

Como criar minha vida interior?

Quando confrontamos essa necessidade de aprofundar o conhecimento de nós mesmos, logo vemos que o empreendimento é imenso. É tão grande quanto o necessário para nossa vida exterior. É também um longo caminho. Muitas vezes chato e desanimador. Contudo, as dificuldades já aparecem no início. A primeira pergunta surge: Por onde começar? Vemos claramente que é necessário um trabalho muito mais longo, mais intenso e mais exigente do que qualquer tentativa desse tipo que já fizemos antes. Exigirá métodos que ignoramos totalmente. Então devemos compreender que há uma nova realidade para ser construída, com novos métodos e conhecimento. Não podemos realizar tal trabalho sozinhos. Não teríamos o tempo, todas as diferentes capacidades, nem mesmo a coragem necessária. 

Então, a primeira dica é encontrar um grupo de buscadores interessados ​​neste trabalho com conhecimento suficiente para criar uma ajuda mútua. Mesmo assim, o interesse necessário para realizar este trabalho virá somente de uma visão suficientemente clara da direção a ser seguida. Principalmente, se não entendermos o significado desses primeiros esforços. Ao longo das várias publicações do blog, vimos que possuímos três modos de agir muito diferentes: um nível instintivo-motor, um nível emocional e um nível intelectual. 

Então, por onde começar? O centro intelectual é mais maleável e menos rápido. Isso é, permite que novos conhecimentos e ideias sejam absorvidas. No entanto, é cheio de ilusões, fantasias e conceitos errados. Por isso é necessário um longo trabalho aprendendo e corrigindo conceitos. Também, um grande tempo de auto-observação para diferenciar o conhecimento útil das fantasias. Por outro lado, o centro emocional é o mais complicado. Requer muita presença para que suas reações não sejam manifestadas automaticamente. 

O corpo é o centro da vida

Assim, o centro que se apresenta de maneira mais acessível para começar a trabalhar é o corpo. Gurdjieff dizia que ele era um Iogue. Ser um Iogue ou Ioguini não significa ser capaz de fazer alongamentos ou posturas complexas. É ser capaz de provocar em si um estado de relaxamento das tensões interiores. O corpo é onde tanto as emoções quanto o pensamento se manifestam. Por isso, essas manifestações criam tensões conscientes, mas também muitas tensões inconscientes. Por isso, podemos dizer que o trabalho exige sempre uma preparação no corpo. Começar por dar liberdade ao corpo, livrar o corpo das respostas automáticas é o caminho mais seguro.

Todavia, os exercícios de relaxamento, presença, sentir a gravidade são somente uma maneira de se preparar para o trabalho psicológico. Isso é, preparações para facilitar tanto o exercício da presença quanto tornar suportável os choques e tensões psicológicas dos centros mental e emocional.

Enfim, é através do corpo que ocorrem todas as trocas da vida e por meio dele recebemos todas as energias de que necessitamos. Por todas essas razões, pode ser sábio começar nosso trabalho através desse centro. Afinal, precisamos ser sábios porque temos uma tarefa difícil. Se não agirmos com inteligência, com certa astúcia, podemos ter certeza de que a estupidez nos levará a amargas decepções. 

Mas devemos lembrar que o grande objetivo é usar todo esse conhecimento e novas habilidades em nossas vidas. Porém, inicialmente devemos nos colocar em circunstâncias especialmente favoráveis ​​e que correspondam ao que é possível para nós. Então, haverá sempre duas linhas no nosso trabalho sobre nós mesmos: Por um lado, o trabalho interior em condições tranquilas, adequadas ao desenvolvimento de certas possibilidades. Por outro, colocar-nos à prova na vida, na medida em que desenvolvimento é realizado. Todavia, a vida é uma tempestade em que é preciso ser muito forte interiormente para não ser perturbado pelos elementos opostos. Assim, antes de nos colocarmos à prova, ou correr grandes riscos, é preciso se desenvolver pacientemente. Melhor ainda que isso seja realizado em condições abrigadas e favoráveis. Ou seja, onde encontramos as forças e faculdades (poderes) favoráveis que nos preservam do desastre. 

Trabalho em grupo é o laboratório para a vida

Um grupo também tem essa função de ser um laboratório controlado, com a presença de forças e faculdades favoráveis. Mas se dispor a trabalhar em um grupo, para o desenvolvimento do Ser, é algo totalmente dispensável para a vida. Isso é, você não precisa disso para ganhar dinheiro e sobreviver. Ao contrário, isso irá criar mais obrigações e compromissos para você. Porém, o grupo é indispensável para aprender a receber os choques. Quando as pessoas se dispõem a trabalhar umas com as outras, sempre haverá momentos em que alguém irá “pisar no tomate” do outro. No entanto, isso é até desejável que realmente aconteça. Afinal, isso cria condições para desenvolver uma maior tolerância com tudo aquilo que não gostamos, incomoda e desagrada. Portanto, é um passo essencial para permitir estudos e trabalhos mais avançados. Além disso, se você conseguir aprender sobre suas manifestações nesse ambiente abrigado, logo entenderá que também pode fazer o mesmo na vida.

No entanto, devemos aprender a achar um certo balanço interior para realizar esse trabalho. Nem sempre encontraremos as condições favoráveis para mobilizar um trabalho interior. É necessário saber mobilizar essas forças quando parecer necessário. No entanto, devemos exigir de nós mesmos uma disciplina sem criar uma luta inútil. Devemos ser inteligentes, mas firmes, sabendo que cada vez que forçamos algo, uma resistência de força igual é criada. Mesmo que a resistência criada pela coação não surja de imediato, essa força ficará em segundo plano. Logo, ela irá crescer e aumentar por repetidas acumulações. Isso até finalmente explodir com efeitos destrutivos. 

Por isso, é necessário conhecer a si, observar em si e agir de acordo. Se essa resistência for provocada e assim encontrar aliados em si, ela pode tornar impossível todo o trabalho real por um tempo. É preciso saber reconhecer nossas resistências. Dessa forma, não se engaje em exercícios, simplesmente porque foi sugerido, logo querendo acabar com isso. Certamente é mais inteligente esperar um momento melhor para agir com presença e vontade. Ao mesmo tempo, deixar para mais tarde o que não podemos fazer de imediato é uma armadilha. Pode-se criar o péssimo hábito da procrastinação. Porém, também é uma forma branda de entrega para tornar o trabalho mais aceitável para aquelas forças internas que não o desejam. Mas, podemos usar a estratégia de esperar por um intervalo definido e até um tempo precisamente fixado de antemão. Então, começar incansavelmente a fazer o esforço novamente. 

Afinal, não é isso que fazemos em nossa vida diária para objetivos muito menos importantes? Quem faz exercícios físicos periodicamente entende isso muito bem. Sempre haverá um certo esforço para quebrar a inércia. Às vezes, precisamos “negociar” com essas resistências e deixar para outro momento ou atender essa demanda após a realização do que foi compromissado. 

Esforços conscientes e inteligentes

Os nossos primeiros esforços de trabalho sobre nós mesmos são apenas a preparação para uma longa série de esforços de trabalho interior. Esforços que serão ainda mais difíceis. Às vezes mais exigentes, cheios de armadilhas e becos sem saída. Onde o risco de se perder é tão grande quanto na vida exterior. Ainda mais, a quantidade de trabalho a ser feita é ainda maior e mais sutil do que em qualquer outro tipo de empreendimento. Inicialmente, este trabalho será na maioria das vezes uma questão de relaxamento e sensação. Depois será de auto-recordação, seguindo métodos precisos e sob a vigilância do que isso traz consigo. Perder nosso caminho neste início pode comprometer qualquer chance de desenvolvimento futuro. E a partir deste ponto devemos abandonar todas as concepções abstratas. 

A relação direta de pessoa com pessoa, mais velho com mais jovem, professor com aluno, faz toda a diferença para criar condições de progresso. Para tanto, é necessário uma consciência interior muito viva. Uma determinação que nunca perde a coragem. Tudo isso são atributos indispensáveis ​​para prosseguir por um caminho que é somente seu. No entanto, tudo é relativo. Afinal, nem todos os seres humanos possuem as mesmas possibilidades de evolução. Mas todos nós temos um caminho que podemos e devemos seguir, e que é essencial para cada um de nós. 

Esse caminho passa por etapas precisas. Ao mesmo tempo, a ordem em que são alcançadas e os meios utilizados para atravessá-las variam de acordo com cada caminho e cada escola. Contudo, não há muitos segredos envolvidos. Existe apenas o fato de que ninguém pode compreender experiências desse tipo sem ter passado por elas. Um falso entendimento, seja ele insuficiente, parcial ou equivocado, é a pior coisa que pode acontecer. Tanto ao indivíduo quanto à escola.

Um resumo sobre a vida

A consciência te chama a ser “eu mesmo”. Ser eu mesmo começa com o autoconhecimento. O autoconhecimento começa com o trabalho em mim. O trabalho em mim é baseado na sensação de mim. A situação de uma pessoa que despertou para a necessidade de ser ele mesmo é difícil em todos os níveis e requer três linhas permanentes de esforço relacionado: 

  1. Reconhecimento (no sentido pleno da palavra, não apenas no sentido de gratidão)
  2. Trabalho consciente
  3. Sofrimento voluntário

A forma precisa desses esforços assume um aspecto diferente em cada nível de desenvolvimento. O primeiro desses aspectos, no nível do despertar para si mesmo, consiste em: 

  1. A submissão a um nível superior de consciência. 
  2. Trabalhe para ser você mesmo por meio da lembrança de si mesmo e dos esforços de autoconsciência. 
  3. Aceitar sacrificar a vida cotidiana na medida necessária para se libertar dela e tentar fazer com que ela sirva ao trabalho em si mesmo. 

Lauro Borges

Esse foi o último artigo da série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.

1 comentário em “Sobre nós e sobre a vida. ”

  1. Queria que minha vida espiritual fosse na terra. Porque se não eu não teria um corpo na terra. Queria que meu céu viesse para terra como fala o Pai Nosso. Que tudo que fazemos no esoterismo místico fosse o mais concreto possível. Acho que o 4C é um dos caminhos que mais contempla isso. O mundo espiritual é cheio de perigos e ilusões. Já tem ilusão suficiente no mal uso da mente e emoções.

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