Essência e personalidade, você sabe diferenciar?

Essência e personalidade estão entre os conceitos mais complexos do desenvolvimento de nossa psique. Da mesma forma, a distinção entre o que é essência e o que é personalidade é um dos pontos mais importantes no estudo de si. Em outras palavras, distinguir esses dois termos é aprender quais são as nossas motivações e funções que nos pertence. Isso é, aprender sobre o que vem de nós mesmos. O que é parte de nossa própria natureza e o que nos é estranho. É preciso saber o que vem do ambiente e representa apenas um empréstimo. 

Suas funções estão a serviço da sua essência ou personalidade?

Nas últimas postagens do blog passamos pelas cinco funções inferiores e pelas duas funções superiores que constituem o nosso organismo físico, mental e emocional. Essas funções são desempenhadas por centros. Então, cada centro possui uma função. Como vimos, é mais fácil observar a ação das funções do que observar diretamente a atuação dos centros. Assim, é mais fácil observar a função pensamento no centro intelectual do que observar o centro intelectual agindo e por aí vai. Todavia, os centros e suas funções são como parte de um grande equipamento que compõem o nosso organismo. Mesmo que os centros e suas funções estejam funcionando de forma integral ainda falta algo ali. Nos falta o senso de identidade, o “eu”.

De alguma forma, seja pela atuação da memória e sensação de continuidade do tempo, precisamos de uma referência que nos diga “isso sou eu” ou “isso não sou eu”. Tal identidade existe mesmo para um santo. Afinal, é esse senso de “eu” que permite distinguir o que eu sou e o que é o mundo exterior a mim. Tal senso de eu faz parte de nossa existência desde nosso nascimento. A muito tempo que o conceito de que uma criança nasce como uma tábua rasa perdeu validade. Mesmo em animais de “dois cérebros” como os cães, podemos notar que filhotes de uma mesma ninhada, possuem temperamentos e comportamentos distintos. Ou seja, possuem em sua essência algo que lhes distinguem dos demais.

Essência e personalidade, as duas faces do “eu”

Deste ponto de vista, estamos divididos em duas partes. Uma parte contém o que nascemos. Assim, contém a semente das qualidades que nos pertencem por direito. Nossas capacidades, nossas incapacidades e tudo o que nos foi dado como nosso. Dessa forma, chamamos isso de nossa “essência”. Outrossim, Gurdjieff utiliza esse conceito dentro de seu significado original. A essência, quase inteiramente potencial no nascimento, desenvolve-se até certo ponto. Depois, se torna o que também chamamos de “ser” do indivíduo. Seu ser interior, o núcleo de sua “individualidade”. Portanto, é o desenvolvimento de nosso ser real que ocorre na medida que desenvolvemos. Assim, a essência corresponde em grau à nossa experiência da realidade no mundo. Por esse fato, é quase inteiramente real. Porém, devemos ater ao fato que a essência ainda contém um potencial não realizado. 

Por outro lado, a personalidade é a outra parte que adquirimos todo o nosso conhecimento. É também a maior parte do que nos atrai. Contudo, é a maior parte do nosso comportamento. Tal parte, a da personalidade, é inexistente no nascimento e se forma em nós gradualmente devido a todas as condições circundantes que nos são impostas. Por esta razão, Gurdjieff usa o termo “personalidade” (do latim persona, uma máscara) para essa parte de nós. Em regra geral, o seu desenvolvimento está apenas remotamente ligado com a realidade do mundo circundante. De outra forma, a personalidade age segundo o que apreendemos. Portanto, em certos casos, pode mesmo constituir-se quase inteiramente de noções imaginárias.

Para separar é preciso aprender a diferenciar

Essas duas partes são quase sempre tão inextricavelmente misturadas em um indivíduo comum que se tornam indistinguíveis. No entanto, ambos estão lá, cada um com sua própria vida e “significado”. Ambos são necessários para a vida. Mais ainda, se alguém quer conhecer a si mesmo, conhecer “sua vida”, esse deve primeiro ser capaz de diferenciar tais partes em si mesmo. 

A personalidade de um indivíduo é “o que não lhe pertence”. Isto é, ele espelha os movimentos, as palavras e a linguagem que lhe foi ensinada. Todos os vestígios de impressões externas gravadas na memória de seus diferentes centros, sensações, os sentimentos que aprendeu, as ideias que adquiriu por imitação ou por sugestão. Tudo isso é personalidade. Digamos que a personalidade é formada pelos conteúdos dos centros. Ou seja, pelo que está inscrito no aparelho registrador ligado a cada centro. Assim como pelos mecanismos que ligam os centros entre si. São todos registros diferentes no mesmo “banco de dados” ou entre registros em “banco de dados” diferentes. 

A personalidade e os amortecedores psicológicos

Aqui cabe um outro grande conceito de Gurdjieff sobre os amortecedores psicológicos. Tais amortecedores possuem o efeito de impedir que registros contraditórios sejam feitos ou recuperados ao mesmo tempo. A personalidade se desenvolve como resultado de circunstâncias externas (lugar, tempo e ambiente) e depende quase inteiramente dessas circunstâncias. Todavia, ela pode ser alterada mais ou menos profundamente por uma mudança nessas condições. Mesmo que os condicionamentos que a compõem possam ser muito fortes. Além disso, tais mudanças podem ser quase completas e às vezes muito rápidas. dessa forma a personalidade, ou parte dela, pode ser perdida, deteriorada, corrigida ou fortalecida

Essência é o seu patrimônio

Ao contrário, A essência é o que é inato. Em outras palavras, são os dons e os traços particulares de cada indivíduo. É o seu patrimônio, colocados a seu cargo para fazê-lo “crescer” na vida. Um indivíduo tem o dom para a música, outro não. Alguém tem o dom das línguas, outro não. Terá aquele que gosta de viajar e fugir, enquanto isso outro gosta de ficar em casa ou é recluso. Um é direto e sincero, outro é desonesto e desconfiado. Um indivíduo simplifica tudo demais, o outro torna tudo muito complicado. A totalidade desses traços particulares é a essência. Seu desenvolvimento no curso da vida pode ocorrer ou não. Tais traços podem ser acentuados ou modificados. Entretanto é esse desenvolvimento da essência, e o seu crescimento, que representa o “ser” do indivíduo. 

Essência e ser no indivíduo são “o que é realmente dele”. Isto é, o que realmente lhe pertence e vai com esse indivíduo em todos os lugares. Ao contrário da personalidade, a essência não pode ser perdida. Também não pode ser modificada sem o consentimento tácito do indivíduo em questão. 

Jean Vaysse

A essência pode ser sufocada ou mesmo totalmente esmagada quase sem que um indivíduo perceba por “se deixar levar” pelo ambiente em que se encontra. Pelo contrário, pode ser liberada e reequilibrada. Mas, em qualquer caso, não pode ser desenvolvida e mudada sem a participação consciente e perseverante do indivíduo. As mudanças na essência são lentas e exigem muito mais trabalho. Exigem mais tempo e mais profundidade do que mudanças na personalidade. 

Corpo, a terceira força entre essência e personalidade

Essência e personalidade têm como suporte um terceiro constituinte do indivíduo: seu corpo orgânico. Este é o instrumento através do qual se realizam todas as trocas que tornam a vida possível. Estes são os três elementos básicos dadas as pessoas. Cada indivíduo tem seu centro de gravidade em um dos principais centros.

O centro de gravidade do corpo é o centro motor. Assim, o centro de gravidade da essência é o centro emocional. Então, o centro de gravidade da personalidade é o centro intelectual. Contudo, essas três partes se desenvolvem independentemente na ordem natural da vida de uma pessoa. Essas partes só entram em conflito acidentalmente e são conectados apenas ocasionalmente. Portanto, nenhuma conexão real é estabelecida entre eles. 

Conectando essência e personalidade, a vida em harmonia

O estabelecimento de conexões reais só pode vir como resultado de um trabalho especialmente dirigido do indivíduo sobre si mesmo. Assim, realizar esse trabalho é o primeiro passo para alcançar a unidade e a individualidade. Logo, é a tríplice constituição que torna essa individualidade possível para uma pessoa. Tanto quanto a qualidade de presença que a acompanha. Pois, é dessa forma que nos é permitido participar plenamente do nosso nível das interações fundamentais das forças criativas da vida. Todavia, como suas três partes são independentes umas das outras por natureza, a individualidade não é dada ao indivíduo no nascimento. Ela só pode ser alcançada como resultado de um longo trabalho sobre si mesmo. O conhecimento do corpo, essência e personalidade é necessário para realizar isso.

Vamos continuar a análise sobre essência e personalidade nas próximas publicações. Um ótimo início de semana a todos e bons estudos a todos vocês

Lauro Borges

Esse artigo faz parte de uma série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.

3 comentários em “Essência e personalidade, você sabe diferenciar?”

  1. Vejo a personalidade como um filtro. O tempo todo vivemos estímulos. Trocas de acontecimentos e situações. Experenciando. Algumas coisas impactam mais uma pessoa do que outra. Em uma determinada oitava uma essência vive certas experiências. A capacidade de viver isso intensamente e trazer isso para seu crescimento permite mudança de oitava e isso requer um pouco de esforço. Por algum motivo o mundo não estimula esse esforço. Algumas pessoas morrem sem saber que precisa de esforço para mudar de oitava e crescer como essência. A personalidade está aqui como o celular. A gente faz o bluetooth como essência e a personalidade pode ser um celular legal cheio de aplicativos legais. Não era pra personalidade atrapalhar se um aplicativo não serve mais a gente deleta ou dá um upgrade.

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