Quando se fala de merecimento caímos no julgamento de valor. O tempo todo estamos comparando o que temos e o que não temos. Ainda mais em tempos de elevadas integrações econômicas e sociais. Se alguém tem um carro esportivo e um avião a jato nos Estados Unidos isso valida a hipótese de que também posso ter. Então, se eu posso ter, eu quero ter e eu posso desejar. Adicione ao cenário uma sociedade que diz somente caber ao indivíduo fazer e este irá conquistar. No entanto, será para poucos que o desejo se tornará realidade. Para muitos, a satisfação nunca será atingida. Então vem a pergunta: mas não fiz por merecer ? Veja, esse pensamento dominante atual afeta não só as relações econômicas. Antes de tudo, é um pensamento dominante que afeta o nosso mundo psicológico. E por afetar o mundo psicológico, afeta também qualquer tentativa de desenvolvimento espiritual.
Recebi a seguinte pergunta de uma pessoa: Se eu sou um ser espiritual numa experiência humana, por quê não quero ser o ser humano que eu sou, você sabe me responder?
Existem várias abordagens para essa pergunta. Irei tentar dar respostas pelo entendimento do Quarto Caminho. Para começar deve-se perguntar quem não quer “ser o humano” e quem está descontente de “ser este humano”. Como abordei no início do artigo e nestes aqui e aqui também, estamos numa cultura que acredita que podemos fazer, que tudo podemos se assim desejar. Uma cultura que não acredita em limites e que pouco valor dá às responsabilidades éticas e morais com o coletivo. Farinha pouca meu pirão primeiro.
Acrescente ainda a pior das ilusões: a de acreditar que somos um ser com uma psicologia única e coesa. Infelizmente não somos um e sim uma multidão. Para tanto, basta observar a si com atenção. Em menos de um mês já é possível ver que não temos coerência quase nenhuma. Nossa psicologia se baseia em uma razão subjetiva e por consequência nossa opinião muda de acordo com a conveniência dos fatos. E esta é a mesma razão de porque as pessoas têm tanta dificuldade em se fazer entender e compreender o outro. É como se todos usassem os óculos amarelos do mago de Oz. No entanto, cada um usa lentes de cores diferentes e ninguém chega a um acordo sobre a cor da estrada que estão caminhando.
Só há uma grande coerência entre todos os seres humanos:
- todos acreditam que são seres racionais,
- possuem livre arbítrio
- e que podem fazer.
No entanto, crescer é questionar com honestidade essas ideias.
Porém, esteja preparado para sofrer ao despir de suas ilusões. Veja o que acontece em você chamar essas crenças de ilusões. Nota que isso lhe ofende? Você aceita suas ilusões sem se identificar com elas? Reconhece o nível do seu Ser, o seu estado interior? Você te aceita neste momento, pois, esta é a sua melhor versão para o momento? É “o que temos para hoje”, entende isso?
Entender que não podemos fazer não significa que não podemos fazer nada. Claro que podemos e devemos fazer nossas obrigações de cidadão em uma sociedade. Despir dessa ilusão não elimina responsabilidades. Ao contrário, se submeter ao caminho do crescimento pessoal significa submeter inicialmente a muito mais regras. O que lhe exige mais esforço que ter uma vida “normal”. Porém, alguns não podem mais ter uma vida normal.
Entenda, o inferno somente existe para quem está construindo sua alma. Aquele que já a tem não sofre mais. Por outro lado, aquele que ainda não tem também não tem consciência e, por isso, não sofre. Aquele que despertou e se viu “nu” no mundo não consegue mais dormir e descobre que tem uma longa e sofrida jornada. Para começar , deve se despir das três grandes ilusões acima.
Acrescente agora uma quarta ilusão.
- Que “eu” despertei espiritualmente, então, já estou transformado.
O amanhecer da consciência não ilumina todos os cantos de sua alma. Despertar de verdade é entender que há algo bom, puro e verdadeiro em você. Este algo que quer crescer acima do monte de lixo que a séculos jogaram em sua psique e de seus familiares. No entanto, o despertar é o começo. É o começo de um longo processo de transformação, longe de ser um fim. Assim, todas grandes tradições criaram escolas iniciáticas onde os aprendizes recebem uma segunda educação.
Então, se você continua a acreditar nessa ladainha de neo-liberalismo moderno de que você é responsável por tudo e por sua meritocracia, que este “eu” é capaz de fazer e transformar, de reinar sobre si, não irá chegar a lugar nenhum. O primeiro passo é mudar suas ideias. É metanoia, que do Grego significa mude seus pensamentos. Porém, não é possível mudar pensamentos sem entendimento. Para mudar os pensamentos uma pessoa deve estudar, se esforçar em práticas físicas, emocionais e mentais.
Aqui o desenvolvimento espiritual não é algo dado de graça. Há um preço a pagar que vem com esforço e dedicação. Adianto que não é nada impossível, porém, exige compromisso e esforços contínuos. Desta forma, um grupo, professores, ou, se tiver sorte de encontrar um grande Mestre muito desenvolvido, é uma ajuda indispensável.
Com o grupo podemos ver que não é “difícil só para mim”. É difícil para todos. Porém, também vemos progresso. Assim, ao observar o progresso do outro, posso acreditar (ter fé) que meu progresso também vai acontecer.
A pergunta também parte de uma questão filosófica: “Se sou um espírito em uma experiência humana…”.
Mas o que é ser um “espírito em uma experiência humana”? Acho que podemos concordar que somos um animal que possui um corpo e que chamamos de Homo Sapiens. Então, vamos chamar esse bicho de “ser humano”. Realmente esse bicho é muito diferente de todos os demais que temos observados. Esse bicho possui uma psicologia muito complexa e capacidade criativa de VER e DAR SENTIDO às coisas.
É incrível a experiência humana. No entanto, definir o que é a alma já é uma questão que não me arrisco a fazer. Eu acredito que temos uma alma. Porém, qual o sentido da palavra alma aqui? É algo que podemos chamar de consciência, ou uma parte do Grande Criador? Pode ser somente uma força de impulso evolutiva que criou uma série de códigos morais e éticos dentro do longo processo de milhares de anos. Pode ser um tanto de coisa e eu gastaria anos e páginas descrevendo sobre isso.
Temos uma alma?
No entanto, para Gurdjieff o erro começa ao acreditar que temos uma alma. Isso é uma questão chave de seu ensinamento. Além disso, é um ponto que entra em colisão com todo um entendimento cultural judaico cristão que alega termos uma alma e basta redimir dos pecados para alcançar as graças dos Céus. Entenda, não temos uma alma e sim uma proto-alma, um embrião de alma. Não somos Seres Humanos enquanto não tivermos alma.
E se você acredita que tem uma alma, não há motivos para buscar realizar o seu trabalho interior. Se você já tem tudo que deseja, por qual razão emocional ou racional que você irá buscar mais? Você já se acha satisfeito pelo simples fato de acreditar que tem uma alma e que na hora que quiser pode simplesmente “despertar” e “ser diferente”. Mais uma vez retornamos às quatro ilusões já citadas acima.
Será que Gurdjieff está certo?
Só há uma maneira de entender. Devemos fazer como ele mesmo instruiu. Faça você mesmo a investigação, veja por si e chegue às suas próprias conclusões. Eu acredito que no mínimo é um pensamento inteligente que me faz sair do automático, reconhecer o nível do meu ser, entender meu potencial e dedicar esforço ao meu desenvolvimento.
Quando se diz que não podemos fazer é que não podemos simplesmente desejar a transformação e esperar que ela aconteça. No entanto, sim podemos fazer e devemos fazer o que nos é possível de fazer. Eu posso ler e estudar, meditar, praticar a integração dos meus três centros, cuidar de meu corpo físico, praticar auto-observação, me esforçar para lembrar de mim e de meus objetivos. Isso é alimentar e cuidar dos “eus” que me habitam e estão engajados a transformar.
Daí eu pergunto: Qual é o seu objetivo?
Você diz querer transformação, mas, sabe para onde quer ir? Onde quer chegar? O quê você precisa transformar que rouba a sua energia, impedindo de sua essência crescer, de sua alma crescer? Então, “o fazer” que podemos nos dedicar é sobre a preparação do terreno. É como um agricultor que pode escolher boas sementes e fazer sua parte. No entanto, a planta crescerá de acordo com sua própria natureza. Antes de tudo devemos parar de nos identificar a todo tempo com nossos comportamentos. Se notar que algo não quer ser transformado, é uma força de negação que deve ser usada como impulso, um choque, para lembrar de quem somos e o que queremos. Como se diz, o plantio não é obrigatório, porém, você irá colher o que plantar.
Quanto a segunda parte da pergunta: “por quê não quero ser o ser humano que eu sou”.
Como conheço a pessoa que fez a pergunta, posso dizer que já teve experiências de autoconhecimento suficientes e é alguém que despertou. Então, quando fazemos as mesmas asneiras de sempre, não mais sentimos o direito de simplesmente reagir e esquecer.
A consciência desperta, mesmo que pequena e sem a força de transformar, é como um alarme. Se antes tudo ignorava, agora não mais pode ser esquecido.
Então, sentimos vergonha e remorso pelos nossos atos. Gurdjieff chama isso de remorso de consciência e é o que realmente salva a nossa alma. Se não temos remorso de consciência não sentimos necessidade de progredir, de transformar. Sem tal remorso as ações se autojustificam.
Assim, é excelente que alguém sinta vergonha e remorso ao perceber que agiu erroneamente em uma situação. Agradeça a este sentimento que te lembrou do seu objetivo, que te fez lembrar de si. No entanto, faça isso sem se identificar. Aqui nasce o início da transformação para aquele que aprende o dilema do não-fazer.
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