Qual a filosofia mais influenciou o Senhor Gurdjieff?
O estudo do Quarto Caminho pelos ensinamentos de Gurdjieff peca pela falta de uma revisão bibliográfica. Sempre senti falta de entender quais eram os sistemas filosóficos e espirituais que guiaram o senhor Gurdjieff. Há algumas citações a um esoterismo cristão. Também são ditas influências budistas que provavelmente dão o mesmo tom de influências teosóficas muito popular no final do século 18 e começo do século 19. Assim como parece haver influências da gnose, hermetismo, sufismo e do esoterismo ocidental.
Entretanto, há algo que sempre me intrigou no sistema do Quarto Caminho e na maneira em que Gurdjieff vive, ensina e escreve. Assim, a ausência de citações de outras obras e sistemas por Gurdjieff deixa um quebra-cabeça a ser explorado. Então, me indago sobre qual o sistema filosófico que teria maior influência sobre Gurdjieff.
Estudando Gurdjieff, mas o que ele estudava?
Gurdjieff sempre chama a atenção sobre a necessidade de estudarmos as raízes das palavras que usamos para descrever algo. Assim como ele dizia da importância de ser preciso em se expressar. A falta de precisão em expressar reflete um pensamento mecânico e herdado. Ao contrário de um pensamento estruturado sob a vontade e o entendimento correto do que se busca expressar.
É sabido que o senhor Gurdjieff falava várias línguas, entre essas dominava completamente o grego. Também é dito que sua família e região de nascimento possuem raízes gregas. É conhecido que ele estudou com um padre ortodóxo e sempre manteve relações com a igreja ortodoxa russa. Da mesma maneira, é muito provável que Gurdjieff leu muitos dos grandes clássicos filosóficos gregos. Há também uma citação no mesmo livro “ Gurdjieff and the Women of the rope, notes of meetings in Paris and New York 1935-1939 and 1948-1949 ” sobre o seu hábito de ler:
Gurdjieff: Eu sou único pela quantidade de livros que li em minha vida em todos os países. Quando não conseguia ler um idioma, pedi para alguém traduzir. Leio cinco ou seis por dia, muitas vezes antes de dormir. Agora não leio nada.
Isso mostra que Gurdjieff não criou seus ensinamentos do nada ou livre de qualquer tipo de influências.
Filosofia de Gurdjieff
Gurdjieff não pode ser descrito por um único sistema. No entanto, há um sistema maior que guia sua filosofia. Esse sistema sempre me chamou a atenção pelas semelhanças em outros sistemas onde o trabalho sobre si é uma provocação constante. Uma leitura recente do livro “Gurdjieff and the Women of the rope, notes of meetings in Paris and New York 1935-1939 and 1948-1949” encontrei uma citação que definitivamente me chamou atenção. Traduzo o trecho abaixo de um diálogo de Gurdjieff com alguns de seus pupilos e amigos quando em Nova York. Um integrante irlandes do grupo chamado Leighton faz um comentário inapropriado sobre o comportamento de um amigo russo de Gurdjieff. Vejamos a passagem:
G: Claro, porque aí ele acha que você está brincando. Você percebe . . . nunca ninguém se ofende com o que eu digo? Até você sabe que palavras eu uso, mas nunca você vê um homem zangado comigo quando eu conto. Você sabe porque? Porque sou cínico.
[Leighton diz que G. não quer dizer cínico, ele não é um cínico. Ele é um cético.]
G: Desculpe, não cético. Cético significa que você acredita, eu não acredito; você espera, eu não espero. Eu conheço essa palavra do grego. Você sabe que conheço raízes gregas. Cínico é palavra. Talvez você não tenha em inglês. Leighton diz que não significa o que Gurdjieff quis dizer. Leighton não quer que Gurdjieff seja um cínico! Ele diz: “Talvez iconoclasta. Você é iconoclasta. Essa palavra, você sabe o que significa – quebrador de ícones. ”
Então Gurdjieff volta à palavra cínico. “Cínico é a palavra certa. Cínico significa um homem que não tem medo de dizer a verdade, exatamente como é, mas nunca ofende as pessoas quando fala porque ele está tão certo, ele fala com tanta exatidão. Eles nunca podem ser ofendidos, porque a verdade que ele conta. ”
Gurdjieff and the Women of the rope, notes of meetings in Paris and New York 1935-1939 and 1948-1949
A citação do próprio senhor Gurdjieff se chamando de cínico é uma evidência muito forte para identificar a raiz da filosofia perdida de Gurdjieff. Então, precisamos compreender o que significa ser cínico para Gurdjieff. Hoje em dia temos o entendimento do termo cínico como alguém repleto de fingimento; desfaçatez: “aluno muito cínico. [Figurado] Que age de maneira imoral ou escandalosa; desavergonhado, impudico (dicio)”. Logo, é completamente compreensível a reação de Leighton em refutar a ideia de que senhor Gurdjieff é um cínico. Contudo, também é compreensível sua vontade de enxergá-lo como um iconoclasta (um destruidor de ícones).
Mas o que é ser cínico então? É uma filosofia.
Ser cínico para Gurdjieff significa que ele se via como adépto do cinismo. O cinismo (em grego clássico: κυνισμός kynismós, em latim cinicus) foi uma corrente filosófica fundada por Antístenes, discípulo de Sócrates e como tal praticada pelos cínicos (em grego clássico: Κυνικοί, latim: Cynici). Assim, para os cínicos, o propósito da vida era viver na virtude, de acordo com a natureza.
O primeiro filósofo a definir o cinismo foi Antístenes, ex-aluno de Sócrates no final do século V a.C. Ele foi seguido por Diógenes de Sinope que levou o cinismo aos seus extremos lógicos e passou a ser visto como o arquétipo de filósofo cínico, sua autarkeia (auto-suficiência) e a apatheia perante as vicissitudes da vida eram os ideais do cinismo (Wiki).
Você deve sempre tentar ter consideração pelo estado do ambiente – se desejar, ser objetivo bom. Você nunca pode ofender uma coisa na terra. Mesmo se você ofender um verme, um dia ele retribuirá.
Gurdjieff – “Gurdjieff and the Women of the rope, notes of meetings in Paris and New York 1935-1939 and 1948-1949”
Mas será que a filosofía de Gurdjieff era mesmo o cinismo?
Engraçado que eu me vi na mesma posição de Leighton em não aceitar que o senhor Gurdjieff fosse um cínico. Não obstante, sempre achei que a filosofia do Quarto caminho possui muitos paralelos com a filosofia do estoicismo.
O estoicismo é uma escola de filosofia helenística fundada na Grécia, em Atenas, por Zenão de Cítio no início do século III a.C. Os estóicos ensinaram que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento, da relação ativa entre determinismo cósmico e liberdade humana e a crença de que é virtuoso manter uma vontade (chamada prohairesis) que está de acordo com a natureza. Devido a isso, os estóicos apresentaram sua filosofia como um modo de vida e pensavam que a melhor indicação da filosofia de um indivíduo não era o que uma pessoa diz, mas como essa pessoa se comporta. Para viver uma boa vida, era preciso entender as regras da ordem natural, uma vez que ensinavam que tudo estava enraizado na natureza.
Mais tarde os estoicos – tais como Sêneca e Epiteto – enfatizaram que, porque “a virtude é suficiente para a felicidade”, um sábio era imune ao infortúnio. Essa crença é semelhante ao significado da frase “calma estoica”, embora a frase não inclua as visões dos “radicais éticos” estóicos, onde somente um sábio pode ser considerado verdadeiramente livre e que todas as corrupções morais são igualmente perversas.O estoicismo desenvolveu-se como um sistema integrado pela lógica, pela física e pela ética, articuladas por princípios comuns. Foi a ética estóica que teve maior influência no desenvolvimento da tradição filosófica e alguns pensam que chegou a influenciar os primórdios do cristianismo (Wiki)
Na semana que vem retorno a esse tema para explorar um pouco mais as diferenças e semelhanças entre esses dois sistemas filosóficos. Da mesma forma, acredito ser de muita utilidade entender as raízes filosóficas do senhor Gurdjieff para que se possa compreender melhor seus ensinamentos. Bons estudos para todos vocês.
no contexto mundial atual calma estoica e práticada virtude vem bem a calhar.