Sou incompleto, e isso é ruim?

Sentir-se incompleto pode ser angustiante. Porém viver é uma angústia. Por mais que uma pessoa tenha recursos financeiros e viva confortável, ainda assim terá muitos problemas na vida. Até por isso Gurdjieff dizia que é preciso evitar criar sofrimentos desnecessários na vida. Afinal, a vida já nos provê sofrimento suficiente. Contudo, é o sofrimento que nos faz perceber que precisamos mudar e evoluir. Caso contrário, não há motivos para buscar se transformar. Ninguém buscará mudar aquilo que julga já estar satisfeito. Portanto, a angustia é a manifestação da tensão no centro emocional.

Incompleto ou inacabado?

Conforme caminhamos no raio da criação pelo Eneagrama, chegamos no abismo que separa o Ponto 5 do Ponto 4. Tal abismo é angustiante. Não há razão ou lógica que faça vencer tal obstáculo. Ainda mais, o que lhe traz ao fundo desse abismo é justamente a compreensão da atual realidade em que se vive. Em outras palavras, esse abismo, como diz Gurdjieff, é a compreensão do verdadeiro “terror da situação” do ser humano. Impossível tal terror não recair sobre aquele que percebe o tão distante estamos da Fonte de emanação Divina. O quão falso e mecânico é a vida orgânica. Uma simples máquina de repetir comportamentos. Contudo, há aqui uma importante mudança de polos: uma mudança do centro do pensamento para o centro emocional.

Portanto, o Ponto 4 do Eneagrama recai sobre o contato com a emoção básica da tristeza. Sentimento esse tão básico e instintivo quanto a raiva, alegria e o medo. Porém, tal tristeza está associado a uma lembrança verdadeira da personalidade do Ponto 4 de que falta algo em si. Entretanto, o que falta é justamente a possibilidade de criar a si e tornar-se algo único e original para o universo. Logo, a percepção dessa ausência, apesar de uma percepção que remeta a uma tristeza, é uma percepção vivida e iluminada. Assim, é uma percepção de que cada um deve construir em si o seu  propósito de vida de maneira a participar da grande obra do universo. Tal percepção dessa potencialidade única e exclusiva, no centro emocional, faz com que o Ponto 4 do Eneagrama tenha um refinado senso de estética.

Van Gogh apresentou ao mundo uma nova estética

Se ver incompleto é um quadro em branco para te receber

Contudo, estética aqui deve ser entendido pela compreensão da filosofia. A Estética tem sua origem na palavra grega aisthesis, que significa “apreensão pelos sentidos”, “percepção”. Portanto, é uma forma de conhecer (apreender) o mundo através dos cinco sentidos (visão, audição, paladar, olfato e tato). Por isso, a estética (aisthesis) também é chamada de Filosofia da Arte. Dessa forma, a pesonalidade cristalizada no Ponto 4 possui esse “bom gosto” natural de provocar a apreensão pelos sentidos. Seja ao realizar algo na cozinha, no modo de se vestir, ao decorar um ambiente ou realizar uma obra de arte.

É justamente esse sentimento de “incompleteza”, de “faltar algo aqui”, que permite o nascer Poíesis. Ou seja, do próprio processo criativo.

Em O Banquete, Platão define poiesis como: “Todo ocasionar para algo que, a partir de uma não-presença sempre transborda e se antecipa numa presença, é produzir.” Nele, Diotima descreve como os mortais lutam pela imortalidade em relação à poiese. Em toda geração e vir-a-ser do belo, há uma espécie de fazer/criar ou poíese. Nesta gênese, há um movimento além do ciclo temporal de nascimento e decadência. “Esse movimento pode ocorrer em três tipos de poíesis: (1) poíesis natural através da procriação sexual, (2) poíesis na cidade através da conquista da fama heroica e, finalmente, (3) poíesis na alma através do cultivo de virtude e conhecimento”.(WIKI)

 Se você quer criar algo original, isso virá da lama, do barro, da matéria escura que se fecunda com a ideia luminosa. Esse sentimento, maior que o próprio criador, precisa estar “aqui e agora”. Para nós seres humanos, não basta simplesmente ser uma ideia, um conceito. É necessário estar aqui, materializado e presente. Portanto, todo esse processo que ocorre no Ponto 4 do Eneagrama é como uma câmara escura que revela uma fotografia de um filme(processo esse que os mais novos nem entenderão).  Tal processo não pode acontecer “a clara luz”. Deve acontecer na mais profunda caverna de reflexão.

É nesse escuro, longe de ruídos e falsos “eus” que cada indivíduo consegue enxergar a si próprio. Todavia, enxergar a si próprio não é simples. É angustiante, doloroso e sofrido. Ainda mais, perceber a vergonha de seus erros e vexames. Perceber o tanto que vivemos aderente a uma falsa personalidade que oculta a verdadeira essência que somos. Portanto, isso não é possível de ser realizado sem um confronto ético e moral. Ainda mais, algo ali terá de morrer para dar lugar ao novo pela poieses.

Quer ser uma cópia incompleta ou um original ?

Ao perceber que se vive simplesmente como uma cópia, a repetir padrões, faz com que se questione qual é o sentido da vida. Sentido esse que não pode simplesmente ser preenchido por ideias ou ideais. Muito menos, pode ser preenchido por explicações metafísicas de que somos biodigestores de energias cósmicas e que tudo retorna ao universo. Pois, se tudo retorna ao universo e tudo é simplesmente uma máquina, então, qual a minha participação nisso? Ser simplesmente uma máquina? Assim, perceber que não há nenhuma originalidade na vida e, muito menos nos indivíduos, faz entrar em contato com um sentimento depressivo.

Dessa forma, a tendência do estado depressivo do Ponto 4, e da personalidade que associa a esse ponto, está ligada a percepção verdadeira e de grande incomodo. Ainda mais, tal atitude depressiva cria um tremendo incomodo a todos em seu redor. Isso porque a grande maioria das pessoas querem justamente fugir de tais questionamentos. Portanto, o que parece ser uma atitude “fraca”, “covarde”, de “mimimi” como tantos outros julgam, é na verdade uma atitude de extrema coragem e força.

Na verdade, muito incomoda nos outros ver tal comportamento na personalidade cristalizada no Ponto 4. Pois, a maioria vivem a negar e reprimir isso em si. Porém, isso será feito até que uma crise se instaure. Assim, toda crise psicológica e depressiva levará a pessoa, de qualquer tipo de personalidade, ao contato com as verdades do Ponto 4 do Eneagrama.

Da mesma maneira, é aqui neste Ponto 4 que enfrentamos as nossas próprias sombras pelo conceito de Jung. Ou seja, todo os nossos conteúdos reprimidos, vergonhosos e não desejados que são expulsos de nossa consciência. Assim, tudo que não desejamos ou não aceitamos ser é atirado a esse abismo do inconsciente.

O Coringa é um excelente exemplo de locais sombrios de nosso inconsciente

Sua falsa personalidade nunca poderá lhe completar

Por outro lado, para a pessoa cuja personalidade que se cristaliza no Ponto 4, há uma grande dificuldade em se diferenciar da falsa personalidade. Isso se deve pelo fato que a falsa personalidade do ponto 4 está também associada com necessidade depressiva do Ponto 4. Portanto, isso torna a situação muito confusa para o desenvolvimento pessoal. Em outras palavras, a ausência de distinção entre a falsa e verdadeira personalidade impede de separar uma da outra.

A grande diferença entre a personalidade do Ponto 4 e a falsa personalidade reside na mecanicidade da ação. Quando a pessoa voluntariamente procura o seu vazio depressivo é uma ação de auto elaboração voluntária e consciente. Portanto, tal vazio depressivo é depressivo como oposto a expansão. Logo, o termo depressivo deve ser compreendido como o momento de retrair-se da vida, meditar, ponderar, enxergar a si e suas ações. Ainda mais, elaborar em si para criar e crescer para um objetivo e propósito. Assim, depressão é como o ato digestivo.

Na vida nos alimentamos. Não só de comida, mas, também de impressões. É a personalidade que exterioriza a essência. Porém, é a falsa personalidade que a distorce. Contudo, ao perceber a si, ao ganhar consciência de si, passamos a nos alimentar de impressões de si. Consequentemente, como todo alimento, é necessário “ruminar”, deglutir, digerir, destruir, absorver seus nutrientes e descartar suas impurezas. Então, serão esses novos nutrientes que poderão ser usados como nova matéria. Como matéria de construção do novo ato criativo. Dessa forma, o ato de digestão e destruição é um ato depressivo.

Ao mesmo tempo, a falsa personalidade do Ponto 4 está identificada com o próprio processo do Ponto 4. Isso a faz perceber que ela em si (a falsa personalidade) será o “banquete da vez”. Assim, se torna muito difícil o processo de transformação que acaba como a percepção de si preso em um imenso abismo. Todavia, o Ponto 4 do Eneagrama traz a sabedoria de que neste mundo das formas tudo pertence ao pó da matéria e para ele retornará.

Incompleto até chegar a sua origem

A origem de todos os problemas e a origem de toda solução está em ti, como matéria, como barro maleável que és. A percepção intelectual do Ponto 5 do Eneagrama sabe que todos somos feitos da mesma matéria e ansiamos as mesmas coisas: reconhecimento, amor, sobrevivência, realização, participação e contribuição entre outros sentimentos. Contudo, será nesse momento da união entre o intelecto e a emoção (Ponto 5 e Ponto 4) que se cria o enlaçamento alquímico entre os opostos. Dessa união nasce uma semente. A semente da própria essência de cada indivíduo. Essência que por definição é única. Sua originalidade nunca poderá ser repetida.

Também, é neste momento que essa semente eclode, lançando suas raízes que se ligam ao fundo do poço do Ponto 4. Assim, será dessa profundidade que nasce a semente plantada no lodo. É do lodo da vida orgânica e, da psique que pertence a ela, que surgirá a matéria necessária para nutrir a sua essência. Tornar-se original é tornar-se um artista de si, um poeta de sua própria vida, um ator que está presente no palco da vida. Se você já fosse completo, nada disso seria possível. Você seria uma máquina perfeita, mas uma máquina. Afinal, a oportunidade única reside no potencial humano que está nessa capacidade de moldar a si dentro de sua própria poieise.

Frida e arte como releitura de si

A mudança de hemisférios no Eneagrama também altera o seu tema central. Se o lado direito carrega uma visão mais cósmica, o lado esquerdo remete a ação do homem na Terra. Portanto, a construção da alma começa aqui no Ponto 4 do Eneagrama. Tudo que ocorreu até aqui foram preparações.

Invejar pode ser algo positivo se souber fazer isso

Quanto ao conceito de inveja dado pelo eneagrama da personalidade, deve ser entendido como a incapacidade da falsa personalidade em elaborar a si. Nenhuma das falsas personalidades, independente do ponto de cristalização, possui a capacidade de evoluir. A falsa personalidade é criada por distorções do processo e serve ao propósito útil da camada da vida orgânica. Por sua vez, a evolução da essência será feita justamente pelo  dispêndio da energia da falsa personalidade. Afinal a falsa personalidade é o maior ladrão de nossas energias e o que impede a manifestação verdadeira do ser.

Este processo doloroso não deve ser subestimando. No entanto, Gurdjieff aponta que a grande maioria das pessoas possuem a capacidade de realizar essa tarefa. Afinal temos em nós a capacidade orgânica de envergonhar. Logo, o que Gurdjieff aponta como um grande problema para a sociedade atual é o fato da completa atrofia desse ‘fundamental impulso de ser’, ou seja, a atrofia da vergonha orgânica (organic shame). Esta que é a principal alavanca da moralidade objetiva.

Para entender mais:

Frida Kahlo >> Veja o filme. Foi uma pintora mexicana conhecida pelos seus muitos retratos, autorretratos, e obras inspiradas na natureza e artefatos do México. Inspirada pela cultura popular do país, empregou um estilo de arte popular para explorar questões de identidade, pós-colonialismo, género, classe, e raça na sociedade mexicana.

Van Gogh >> Renderizado no estilo do amado mestre holandês, este filme biográfico animado conta os últimos dias torturantes de Vincent van Gogh.

Poiesis >> veja mais aqui e nas referências

Coringa, o filme >> “Coringa” é uma história independente e original. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem ignorado pela sociedade, não é apenas um caso de estudo comportamental, mas uma lição de vida. O Coringa representa o sombrio que é renegado ao abismo do inconsciente.

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