O seriado Stranger Things chegou em sua quarta temporada trazendo muitas recordações nostálgicas dos anos 80. Também fez ressurgir um hit musical esquecido no tempo que foi usado como um artifício “mágico” contra o ser das trevas que habita a cidade de Hawkins. Essa pacata cidade norte americana esconde algo sombrio. Nas primeiras temporadas foram apresentados como seres de outros planetas ou dimensões. Depois parece como o “devorador de mentes”. Finalmente sua fonte é revelada: a negatividade de suas próprias emoções!
Devo alertar que esse conteúdo contém spoiler!
Inicialmente a primeira vítima de tal poder sombrio foi o garotinho Will Byers. Já chama a atenção que as forças sombrias de Hawkins estejam perseguindo “Will”, que significa vontade, arbítrio e desejo em inglês. Justamente quando perdemos nosso livre arbítrio que ficamos à mercê de qualquer força da vida que chega. Ele foi salvo pela força psíquica de Eleven (onze). Uma garotinha com poderes especiais que tenta se adaptar a uma vida normal do mundo que vivemos. O tal monstro sombrio e suas hordas são derrotadas e “Will” (a vontade) é resgatada do mundo das trevas, retornando ao mundo da luz.
A quarta temporada começa com a garotada enfrentando os desafios da vida. Podemos ver e lembrar que não é fácil crescer. Não é fácil estabelecer uma relação no mundo exterior que apresar de “claro” é tão caótico como o mundo escuro das trevas. Porém, logo coisas estranhas voltam acontecer e o verdadeiro responsável por toda confusão do mundo invertido da cidade de Hawkins é apresentado. O verdadeiro vilão é Vecna. Esse nome é retirado do jogo de RPG Dungeons and Dragons (masmorras e dragões em português). Vecna é o deus maligno dos segredos, dos mortos-vivos e da necromancia. Ele inicialmente identifica suas vítimas como pessoas que escondem em si sofrimentos e angústias, de vergonha, remorsos e tristezas. Tal poder sombrio pode ver o que a vítima mais se esforça para esconder do mundo. Assim, ele entra por dentro da pessoa e a arrasta para o seu reino invertido das trevas.
A última de suas vítimas é a garota Max que é apresentada na série na segunda temporada. Ela sofre por sentir culpa pela morte de seu meio irmão no final da terceira temporada. Quando ela sofre o primeiro ataque de Vecna, é salva por uma música positiva que é a sua música mais preferida. É o poder dessa música que lhe retira “da lama” por assim dizer e a traz de volta para o mundo da luz. A música chama “running up that hill (a deal with God)” (subindo essa colina, um acordo com Deus) da cantora Kate Bush. Particularmente eu não me lembro dessa música apesar de ter sido um adolescente nos anos 80. Coloco abaixo parte da letra traduzida
E se ao menos eu pudesse
Fazer um acordo com Deus
Eu o convenceria a trocar nossos lugares
Estaria percorrendo aquela estrada
Estaria subindo aquela colina
Estaria subindo aquele prédio
E se ao menos eu pudesseVocê não quer me machucar
Mas veja a profundidade da bala
Sem saber que estou destruindo você
Oh, há trovão em nossos coraçõesExiste tanto ódio por aqueles que amamos
Me diga, nós dois importamos, não é?É você
Kate Bush – Running up that hill
É você e eu, não seremos infelizes
A música é como uma força 3 que chega à pessoa em dificuldade. É uma força externa que lhe faz lembrar de seus propósitos além da dor. Max precisa lembrar de si constantemente. Ela está sempre sendo dragada pelas lembranças negativas. Assim, tais lembranças a faz esquecer que suas experiências não são só negativas. Ainda mais, que muito que nos acontece foram imposições externas e casualidades da vida. Coisas estranhas que nos arrastaram para uma série de eventos muito além de nosso controle. No entanto, ela se acha responsável por tudo isso. Ela se vê responsável por ter criado todo esse caos e ter matado seu meio irmão. Assim, ela se esquece que é uma vítima do acaso tanto quanto o meio irmão.
Max e seu meio irmão Billy são filhos de uma família caótica onde a expressão da raiva individual foi a saída para a sobrevivência de seus egos. O caos já era parte de Billy tanto quanto dela. O fato dela não ter o conseguido salvar ensina a ela e a todos nós que na verdade pouco podemos fazer pelas pessoas a nossa volta se estamos no mesmo nível de caos que estes. Quando se observa pela ótica da imparcialidade objetiva, Max tem pouca responsabilidade ou até nenhuma. Ainda mais que pouco poderia fazer para salvar seu meio irmão da gigantesca força do caos. Assim como na vida, quando o caos abarca entes queridos próximos a nós, resta apenas o sentimento de total impotência perante tudo isso. O problema da culpa de Max é que ela esquece de si.
Não quero dizer aqui que não podemos ou não devemos fazer nada a um amigo ou parente. Devemos sim, guiados pela caridade e sentimentos que temos sempre buscar ajudar no que for possível. No entanto, do ponto de vista do Trabalho, devemos concentrar esforços em salvar a nós mesmos. Somente assim podemos estar em outro nível de ser e poder então ajudar a quem aceita a ajuda.
Max enfrenta a clássica história do bem contra o mal. O herói que deve lutar contra sua própria sombra. Deve então resistir a submissão assustadora e passiva ao lado sombrio das emoções negativas. Somos abarcados por tais emoções seja como um destino, punição ou castigo percebido. Ou simplesmente pela necessidade de poder e afirmação.
Vecna é a materialização das emoções negativas. Representa o que nos faz sucumbir a tendência de manter nesse padrão de reações. Essa força quer te definir e cristalizar. É aquela “vozinha” que sabota toda e qualquer tentativa sua de enfrentar o trabalho interior. Em outras palavras, toda a tentativa de crescer, de ser dono de sua Vontade (Will), de sacrificar o próprio sofrimento. Afinal, tudo que lhe impuseram de dor e sofrimento em sua vida só pode ser curado com outro tipo de dor e sofrimento: É pelo sacrifício da própria dor e sofrimento.
Nenhum curador externo pode curar sua própria ferida. Por isso Max, a garota que é o “máximo”, entende que não adianta viver uma vida de eterno conflito com suas emoções e dependência de uma muleta externa (a música). Para tanto ela se prepara inicialmente aceitando a ajuda de todos que a amam a sua volta. Ela se abre para essas pessoas. Então, isso lhe dá coragem de fazer o que lhe é necessário: enfrentar Vecna em seu próprio reino sem a música. É uma operação muito arriscada. Ela entende que poderá morrer. Entenda que é isso mesmo que o ego sente quando percebe que precisa sacrificar aquilo que lhe definiu até ali. E são as emoções negativas que mais nos aprisionam em padrões destrutivos. O receio e medo da Max não é fútil.
Aqui há outro aprendizado do Trabalho sobre o momento certo de realizar a transformação. Quando tentamos acelerar muito esse processo colocamos em risco nossa própria existência. Nosso ego é tão sensível como qualquer órgão vital que possuímos. Se tentamos nos transformar muito rápido, podemos criar mais problemas que soluções. Max foi imprudente em correr o risco de enfrentar Vecna. No entanto, por vezes o acaso da vida nos empurra para situações que não temos controle. Porém, ela entende que precisa acreditar em sua fé e sacrificar-se em nome de algo maior.
Movida pelo seu ato heroico , Max se põe como uma mártir. Todavia, graças a uma “intervenção divina”, Max não morre. No entanto, fica em coma e cega no hospital. Todos perguntam onde está Max nesse momento? Ela está justamente atravessando o que os místicos chamam de “a noite escura da alma”. Sua cegueira é simbólica. Sua impotência, “a garota que era o máximo”, reduzida a um nada, é simbólica. O herói/ heroína foi despojada de todos os seus poderes. Ela enfrentou a dualidade e a sua própria mortalidade. Mas qual o fim de Max? Para saber teremos de aguardar a quinta temporada.
Entretanto, faço aqui minhas apostas. O bem triunfará sobre o mal porque nossa psique não tolera algo diferente disso. Caso contrário, a história se torna tão caótica que não pode ser aceita. Não há resolução. Se Max foi resgatada das trevas é porque ela deve renascer como Lazaro de sua própria masmorra. Assim ensinar a todos os telespectadores sobre esse corajoso processo de crescimento interior.
Para finalizar, as histórias mitológicas nunca morrem. Os deuses antigos estão aí sempre ao nosso redor em nossas vidas. Vecna age como Hades que realiza o rapto de Perséfone. Ele age como a medusa que paralisa suas vítimas com o próprio medo. Quanto mais uma história consegue contar sem dizer, mais intrigante ela se torna. Assim, são esses meandros psicológicos que nos atraem, pois, a história sobre coisas estranhas é sobre a nossa própria vida.
Uma ótima semana de estudos e férias para quem for de férias.
Lauro Borges
Não assisti e não me interesso por muitas séries, e tenho ctz que essa análise me interessa mais do que assistir sem fazer nenhuma dessas associações sozinha.