Ao encontro de si

No caminho ao encontro de si sempre chega o momento em que deparamos com conteúdo perturbadores. Por isso auto-observação nunca é fácil e nem automática. Deparar com a visão da própria inveja, do medo, do recreio do julgamento público não é fácil. Assim como não é fácil ver o próprio orgulho, vaidade e presunção que negam tudo aquilo que te diminui.

Contudo, realizar auto-observação sem ter um objetivo é o mesmo que criar uma prática ascética de tortura física. Buscar a espiritualidade é também buscar dar sentido em um mundo de caos. Assim, é preciso ter sempre claro qual o seu objetivo. Quanto mais palpável esse objetivo for melhor será para você. Digo palpável no sentido de ser um objetivo sólido e não algo “esotérico” e generalista do tipo “ser uma pessoa da luz”. Se esse é o seu objetivo, então você precisa saber o que significa ser isso que deseja tornar-se.

Porém, volto antes na questão do porquê é tão difícil realizar a auto-observação. Existe um fato que talvez você já tenha percebido: é difícil lidar com o conceito do erro. Gurdjieff chama esse sentimento de remorso de consciência ou vergonha orgânica. A vergonha orgânica é um órgão por assim dizer. Em outras palavras, faz parte de uma função biológica que nos faz arrepender de ter feito algo uma vez que tomamos consciência do erro e do dano que tal ação ocasionou. Contudo, em um conceito evolucionista não existe erro e sim experimentação. Todavia, se você está sempre experimentando e não tem uma referência que lhe diz “opa, isso não foi nada legal”, você não tem como aprender com o que experimenta. Da mesma forma, a vida evolui à medida que aprende com o que experimenta.

Na verdade, você está sempre testando hipóteses ou repetindo padrões inconscientes. Por mais que você ache “ter o controle da situação” dificilmente o temos. Então, vivemos um mundo complexo onde estamos tateando conceitos ontológicos. Quando enxergamos os próprios defeitos e a nossa própria sombra também enxergamos as sombras e defeitos dos outros. Fato é que a maioria das pessoas tem muito mais facilidade de enxergar sombras dos outros do que as próprias. Porém, todo mundo tem sombra. Assim como todo sistema espiritual também tem sombras. Enfim, não há sistema espiritual sem a participação do ser humano. E onde há ser humano, haverá sombras. Haverá erros, preconceitos, legitimações que privilegiam classes, gêneros, grupos, entre outros.

Infelizmente, é muito mais difícil atingir qualquer evolução e aprendizado trilhando o próprio caminho sem ter uma referência. No entanto, nenhuma referência será perfeita. Logo, todo esse processo ocorre em um caminhar entre o que é certo e errado, o que é verdade e mentira, o que é falso e verdadeiro. É um processo muito doloroso e penoso. Doloroso porque nos vemos errando e penoso porque demanda esforço contínuo e elaboração constante.

Esse processo te coloca em contato com a equidade de que todos sofremos dessa mesma lei. Não há distinção entre ser rico ou pobre, intelectual ou uma pessoa simples. Fato é que por muitas vezes menos é mais. Porém, não ache que o reino dos céus seja dos pobres. Pobre que entra no reino do céu é aquele que entende que não há valor nenhum em carregar esse sofrimento. O valor está em entregar-se ao objetivo apesar de tudo isso. Mesmo que não haja fé, mesmo que sua esperança seja ínfima.  

É justamente neste ponto que a individualização começa acontecer. Quando a pessoa percebe que é capaz de abandonar seu sofrimento desnecessário, manter-se fiel ao seu objetivo e atento ao que sua atenção lhe ensina. Há algo mágico que acontece quando tornamos o erro a parte mais preciosa da experiência. Infelizmente, passamos a maior parte da vida buscando culpados pelos nossos erros, em um processo de martirização ou ainda de flagelação. Dessa forma, se a pessoa não individualiza ela irá se perder dentro desse imenso processo de dor coletiva. Por isso é dito muitas vezes que nunca comece um processo de crescimento espiritual se não está disposto a percorrer um longo e tortuoso caminho. Não entre nisso achando que lhe fará bem. Isso lhe trará muito mais problemas antes de lhe fazer bem.

Para aqueles que já entenderam que não há ganho sem dor, devem então aprender a transformar a dor em alegria e amor. Deve realizar uma experiência cada vez mais viva e livre de condicionamento. Para tanto, não transforme práticas em dogmas. Da mesma forma, não viva uma vida de repetição de histórias interiores. Uma vida com sempre os mesmos humores e reações. A vida de um iniciado é de quem se entrega ao trabalho com alegria e pleno amor. Não é gostar de sofrer. Longe disso. É ter a alegria de se desafiar ao impossível com o Trabalho. É amar o Trabalho pelo simples fato de estar vivo e pronto.

Passar por esse processo de encarar o erro seu e dos outros como tesouro não é esquecer e nem mesmo perdoar. Todavia, perdoar pode fazer parte e é algo importante. Digo isso porque perdoar é se desvencilhar. Não é dizer que o que aconteceu não tem importância. Tem muita importância porque você foi machucado ou machucou alguém. Porém, se você perdoa desvencilhará dos laços psicológicos que te prendem nesse eterno sofrimento de buscar responsável pela sua dor.

O caminho é muito mais seco do que gostamos. Por outro lado, o coração precisa encontrar um pequeno pedaço de ouro dentro de si. Se você está sempre totalmente identificado com todo esse processo de dor, erro e sofrimento, dificilmente encontrará luz para alcançar o seu objetivo. Porém, você deve sempre lembrar do seu objetivo e lembrar de algo inviolável em você. Algo incorruptível. Uma pedra sagrada, um pequeno tesouro que ninguém nunca pode lhe arrancar porque é inalcançável aos outros. Pertence somente a ti. E é ao redor desse tesouro que você deve construir um templo. Um templo interior que lhe separa do resto do mundo caótico externo e interno ao qual passamos a maior parte de nosso tempo.

Entenderá então por que práticas de corpo são tão importantes no desenvolvimento espiritual. O corpo lhe dá um local único e impenetrável. Sinta seu corpo, a gravidade e sua respiração. Deixe qualquer tensão de lado e coloque a atenção em você. Algo tão simples assim já é suficiente para aprender que nesse local sagrado o erro e o aprendizado andam juntos.

Não adianta buscar perfeição divina em nenhum ser humano. Serão sempre falhos. O que é perfeito está inacessível aos olhos e sentidos exteriores. Mas vejo pessoas se esforçando para se conhecer. Só que tudo vai exigir uma preparação para um esforço. Não é fácil ficar perante si mesmo desprovido de todos os tipos de proteções e armaduras psicológicas. Ver que você está aqui participando de tantos erros e que contribui para muitos deles é uma pancada na cara. Ao mesmo tempo, é a própria solução. Tão simples como isso.

Se a pessoa não cria uma perspectiva diferente não evolui. Continua achando que tudo isso está acontecendo no mesmo plano, que não há separação e nem escapatória. Quando Cristo entra em Jerusalém em um jumento, o grande símbolo não é Cristo e sim o animal. Esse animal que carrega um homem sagrado com grande determinação e esforço. Com passividade e ao mesmo tempo força e coragem.

Você tem de ser um jumento que carrega um idiota que traz dentro de si um tesouro. Quanto mais tesouro, mais idiota. Mais luz mais sombras lhe são reveladas. Mais identificação lhe são apresentadas. Do mesmo modo, mais oportunidades de transformar em mais tesouros. Afinal o grande problema é a identificação, o apego a nossas idiotices. Consciente ou inconsciente. Não é o tamanho da sombra em si e nem o tamanho da luz. O grande problema é o tamanho do apego. O tanto que se está enraizado nas mesmas crendices e padrões de comportamento.

Entretanto, as pessoas querem resoluções mágicas. Porém, um verdadeiro mágico é aquele que se esforça para criar seu campo de verdades, o mais puro possível, em seu íntimo. Por isso a qualidade da mágica de cada um depende sempre do que este carrega em seu coração. Se já encontrou o seu tesouro, ele será um mago que buscará fazer o bem. Mesmo que faça umas lambanças pelo caminho. No entanto, o erro faz parte de quem experimenta, esforça e realiza. Essa pessoa irá alcançar sua individualidade se desidentificando de tudo que lhe é possível.  Estará vivo e conduzido por sua luz que é a grande luz do universo.

Porém se esse mago está preso em suas feridas, então buscará o que seu íntimo deseja. Poder de vingança, aprovação, controle, satisfação sensorial e prazer que aplaque sua dor. Buscará culpados pelo erro e de nada extrairá dali a não ser uma eterna troca de polaridade quando vítima vira carrasco.

Enquanto estamos por aqui, todos teremos momentos de trevas e dias ensolarados. Inicialmente você desconhece esse local, depois o reconhece, mas não sabe diferenciar. Com esforço pode aprender a diferenciar e reconhecer sua sacralidade. Com isso também passar a reconhecer que tudo e todos possuem esse local individualmente. Mas é difícil ficar nesse local. Isso porque estamos sempre nos identificando com tudo. Caímos no sono e esquecemos. Por isso é preciso se ver como dois. Entender que apesar de você ter esse local ainda existe muito de você ou grande parte de você que não está lá. Isso não é se dividir em duas personalidades esquizofrênicas. É aprender a enxergar a sua totalidade.

Uma ótima semana de estudos para todos vocês

Lauro Borges

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