O hábito que faz o monge

Disciplina e práticas não resolvem nada. No entanto, qualquer aprendizado fica ainda mais difícil sem isso. Quando Gurdjieff chamou seus ensinamentos de escola do Quarto Caminho, isso se deve a um conjunto de ensinamentos e práticas sobre os três centros de inteligência. Dessa forma, uma integração dos três centros de inteligência é o que permite criar uma alma. Para Gurdjieff, a maioria das tradições acabam por trabalhar unilateralmente os centros de inteligência. Portanto, o caminho se torna mais longo do que o necessário.

Gurdjieff diz que a ação combinada e harmônica dos centros de inteligência é o verdadeiro atalho para o desenvolvimento pessoal. No entanto, tal atalho não significa que não há esforços contínuos e de longo prazo. Contudo, significa que simplesmente podem ser realizados dentro das rotinas da vida. Portanto, não exigem que uma pessoa abandone radicalmente suas atividades da vida. Assim, ninguém precisa abandonar sua família e ir morar em um mosteiro afastado para poder se desenvolver.

Tudo começa pela disciplina

Entretanto, devemos lembrar que qualquer caminho de desenvolvimento exige disciplina e práticas. Mesmo que Gurdjieff não tenha deixado sistematizado um único processo, ainda assim ele deixou alguns fundamentos básicos que devem ser continuamente observados. Assim como alguns esforços são mais requeridos no começo da jornada e não precisam ser tão demandantes ao longo do tempo.

Entre tais esforços está a auto-observação. Apesar de ser algo que nunca se torna automático e sempre necessário. Contudo, é uma atividade muito mais preparatória e educativa para quem se inicia nessa jornada do que para os mais experientes. Se uma pessoa ainda está dispensando muito tempo realizando auto observação, provavelmente  não entendeu ainda a sua verdadeira necessidade.

Torne-se um aprendiz

Qualquer pessoa que inicia em uma atividade é um discípulo. A raiz dessa palavra tem o mesmo significado de disciplina. Também significa aprendiz. Ou seja, discípulo é aquele que se sujeita a um método de uma escola e de seus professores para aprender algo pela disciplina. Portanto, será o hábito que faz o monge. Nesse caso, o hábito não significa as vestimentas do monge e sim todo o conjunto de disciplinas e práticas habituais que o monge se sujeita diariamente.

Porém, outro provérbio cabe aqui: burro carregado de livros é doutor. Ou seja, não basta simplesmente estar em uma escola se não está praticando o que lhe é pedido. É a prática continua que cria o campo fértil para a transformação de longo prazo.

Infelizmente vivemos uma sociedade do agora e dos resultados imediatos. A maioria das pessoas não estão dispostas a abrir minimamente parte de seu tempo para si. O Quarto Caminho ajuda a tornar possível o desenvolvimento dentro de uma vida comum. Todavia, isso não significa que não há necessidades mínimas de práticas diárias e contínuas.

Corpo e o centro físico

Podemos começar pela necessidade de desenvolver individualmente cada um dos três centros de inteligência para posteriormente trabalhar em harmonia entre si. Logo, o primeiro centro e mais fácil de ser desenvolvido é o centro físico. A primeira necessidade básica é cuidar de sua máquina. Gurdjieff não foi adepto a alimentação “saudável” e a prática de exercícios físicos de academias como conhecemos hoje. No entanto, devemos lembrar que ele viveu no começo do século 20 onde ainda as pessoas eram bem menos sedentárias do que hoje. É como uma pessoa viver em uma fazenda não mecanizada. A própria rotina de atividades já é tão extenuante que não exige nenhuma atividade física. Porém, hoje em dia somos escravos das telas. A grande maioria das pessoas passam tempo excessivo sentadas. Isso é prejudicial ao corpo.

Um corpo sem disciplina é como um cavalo fraco e doente que deve puxar uma carroça. Assim, nos dias de hoje devemos considerar uma rotina de exercícios físicos para manter o corpo saudável e energizado. Isso forma a base que permitirá que outras práticas sejam realizadas, como a prática da meditação.

Pense e aprenda a pensar

Outro grande vício de nossa era é o excesso de uso do centro mental. Isso é uma armadilha ainda maior para quem se inicia nesse desenvolvimento. O centro mental é por vezes ainda mais fácil de trabalhar que o centro físico. Também é bastante maleável. Porém, é o centro mais lento de todos. Mesmo assim, o entendimento sobre os processos psicológicos, filosóficos, morais e porque não dizer espirituais ajudam principalmente o ego a compreender tudo o que lhe acontece e o que está por vir.

A educação e conhecimento ajuda a direcionar nossas ações. Quanto mais culta uma pessoa, mais possibilidades ela enxergará. Mesmo assim, nada se resolve sozinho pelo centro intelectual inferior. Ainda mais, não será lendo uma biblioteca de livros que alguém conseguirá compreender o centro intelectual superior. Tal compreensão se deve principalmente pela própria experiência direta. Porém, uma mente educada poderá tirar mais proveito de suas experiências do que uma mente inculta.

Outro benefício de uma rotina contínua de educação mental é lembrar do Trabalho. O fato é que esquecemos o tempo todo de trabalhar para si, em seu próprio desenvolvimento pessoal. Portanto, a leitura de livros e textos, ouvir podcasts ou ver um vídeo que nos conecta ao trabalho tem a ação de reforçar a fé. Não obstante, as grandes religiões pregam leitura contínua de seus livros sagrados. Este é um método mais que comprovado.

Aproxime-se de seu verdadeiro centro emocional

O trabalho do centro emocional é o mais complexo de todos. Afinal é no centro emocional que reside toda a motivação para as nossas ações. Então esse trabalho pode ser dividido em duas partes. A primeira parte é o trabalho terapêutico de conhecer e transformar suas emoções negativas. Todos vivemos traumas e existem várias técnicas terapêuticas de grupos ou individuais que uma pessoa pode buscar. Todas essas técnicas visam ajudar a desvencilhar emoções aprisionadas em traumas do passado. Não devemos ignorar a necessidade de olhar para nosso ego e suas feridas. Muita gente se perde buscando práticas mais avançadas de desenvolvimento espiritual sem olhar seriamente para seus problemas psicológicos e emocionais.

Não obstante, não adianta acreditar que o terapeuta irá mudar sua vida. Não há o que possa ser delegado em relação ao desenvolvimento pessoal. Isso cabe somente a você. Terapias podem aliviar muitos sintomas e retirar muitas cargas emocionais de uma pessoa. Apesar disso, se não há um trabalho contínuo e de longo prazo, provavelmente haverá novo acúmulo de emoções. Escolher também a terapia como caminho principal e único tornará seu desenvolvimento muito mais lento. Sendo assim, as práticas dos outros centros (físico e mental) são fundamentais para suportar o desenvolvimento emocional. Por vezes, uma boa caminhada em um belo lugar é mais do que suficiente para não lhe deixar tomado por emoções negativas.

A segunda parte do trabalho emocional é quanto à necessidade de práticas devocionais. Afinal, todo o desenvolvimento humano é sobre sair de uma visão egoísta para uma visão altruísta. Consequentemente, devotar-se a uma causa maior que si mesmo é o grande trabalho. Contudo, este é o trabalho que nos faz conectar ao centro emocional superior. E é através dessa conexão que o verdadeiro trabalho interior começa acontecer. Nada do que veio antes é realmente importante. Tudo é somente uma preparação para esse momento.

Meditação e o aparato do sentir (sensing)

Ainda acredito que vale citar pelo menos duas práticas adicionais que podem ser complementares as atividades até aqui sugeridas. A primeira prática é a da meditação. Gurdjieff dava muita atenção a essa prática e em especial a sua preparação através dos exercícios de sentir pelo corpo (“sensing”). Tal prática é essencial para que haja um aterramento de todas as vivências. Afinal, todo o desenvolvimento é construído no indivíduo que é um corpo. Então, outra prática complementar são práticas que lhe colocam em contato justamente com esse aparato de sentir refinado do corpo. Tais práticas são obtidas pela Ioga ou atividades similares.

Por fim, a auto-observação é uma prática que deve permear todas as demais práticas. Ainda assim, deve ser lembrado que é somente um meio, somente uma prática. A auto-observação deve ensinar de forma direta o que se aprendeu pelos livros e falas de professores. Desse modo, deve mostrar diretamente a você o seu sonambulismo, viés cognitivo, reações, negações, mecanicidade etc. Também deve lhe mostrar sua evolução, sua capacidade de agir pela sua livre vontade e desejo. Afinal, você é o seu próprio livro. Apesar disso, existe uma armadilha em acreditar que estar realizando auto-observação é está realizando o trabalho interior. Se tal prática não estiver conectada a todas as demais práticas facilmente se torna uma excelente distração para o ego.

Primeira ação! Faça o seu planejamento

Para finalizar sugiro então que faça o seu planejamento de suas atividades. Coloque no papel seus horários e compromissos. Veja o que você pode abdicar e o que você pode conciliar. Defina em seu calendário uma rotina que cubra todas as práticas aqui listadas de pelo menos 10 minutos diários. Por vezes, você pode substituir um trecho de ônibus por uma caminhada. Pode aproveitar um trajeto de carro para ouvir um podcast. Se estiver de carona poderá ler um trecho de livro ou fazer uma meditação. Criar o hábito, fazer com atenção e dedicação por 10 minutos com constância é a ação mais importante que lhe trará resultados contínuos e de longo prazo.

Uma ótima semana de estudos e práticas para todos vocês

Lauro Borges

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