O primeiro grande obstáculo para o despertar é o simples fato de que não conseguimos ver que estamos dormindo. Quando nos encontramos no estado de vigília, ou seja, o estado de presença somente para a vida, não podemos apreciar as qualidades de estar desperto para o verdadeiro eu. Não há estado de presença em si e nem autoconsciência. É por isso que se chama este estado de sonambulismo. A vida toma conta de drenar toda a atenção e energia.
Despertar para quê?
Não há necessidade de nenhum despertar além do sono biológico restaurador para estar na vida. Não há necessidade de um despertar de consciência. Mesmo que eventualmente aconteça de uma pessoa sentir uma vontade de buscar um segundo despertar, dificilmente terá forças suficientes para realizar isso. Não há vontade suficiente de ser. Isso somente será possível quando influências externas e especiais chegam a essa pessoa. E este segundo despertar tem somente a ver com a vida de seu interior. Em outras palavras, de um mundo totalmente diferente do mundo externo do dia a dia. Assim, é preciso haver vontade interior de ser para um dia receber as influências certas que lhe trarão a um segundo nascimento (como muitas tradições descrevem).
No entanto, uma pessoa pode não ter vontade nenhuma de que isso venha acontecer. Isso pode ocorrer devido a questões de sua essência, as condições da vida em geral desde seu nascimento e da educação recebida. Ao mesmo tempo, uma pessoa que não venha a receber as influências corretas também poderá não realizar seu despertar. Contudo, mesmo aqueles poucos que venham a ter vontade interior suficiente e recebam influências exteriores corretas ainda terão de enfrentar imensos obstáculos e podem nunca conseguir obter tal êxito.
“A grande dificuldade que sempre perdura reside em como observar seu verdadeiro estado interior. Reconhecer o que poderia ajudá-lo a alcançar seus objetivos de crescimento pessoal na direção certa exige uma atitude interior especial de sinceridade. Atitude essa livre de convenções e regras adquiridas, que lhe permitirão ver com completa “objetividade”. Com uma consciência própria, tanto o que se é e o que o mundo ao seu redor é.”
Jean Vaysse
Todavia, isso só é possível com o auxílio de uma consciência Objetiva. Porém, todas as ideias que foram construídas, toda a sua educação, todos os seus condicionamentos resistem a isso. Além disso, somos sempre arrebatados pela vida e pelas incessantes exigências a que ela nos obriga a responder. Assim, a grande maioria das pessoas recusam-se a ver o que lhe é mecânico e adormecido. Nunca é dado o tempo para a exigência interior ou ao desejo de ser.
Despertar requer vencer obstáculos impostos e construídos
O fato é que sua consciência objetiva está enterrada por tudo que lhe foi imposto e construído por si. Tudo para atender todas as exigências exteriores. No entanto, a pior de todas as ilusões reside em acreditar que já se possui uma individualidade autêntica. Ainda mais que ela possui todas as qualidades fundamentais que a acompanham. Ou seja, a ilusão de acreditar que já possui a qualidade de presença permanente e liberdade. Que já possui a liberdade de escolha e as faculdades que vem dela como o estado consciente, a capacidade de atenção e a capacidade de querer e fazer. As pessoas acreditam que já são conscientes e isso basta para a maioria das pessoas.
Para essas pessoas, seus problemas e defeitos são oriundos do mundo externo. Assim, basta então uma nova adaptação exterior. Dessa forma, por que alguém que acredita em si, nessas circunstâncias, irá gastar seu tempo empreendendo o difícil trabalho de evolução? Por qual razão colocar em risco sua estabilidade em nome de mais desafios e incertezas?
Essa pergunta só é respondida positivamente por uma pessoa que possui uma consciência interior excepcionalmente ativa. Ainda mais, tal pessoa deve ter uma exigência interior implacável e um desejo de ser ele/ela mesmo. Nada pode dela suprimir tal desejo. Ou então, tal pessoa deve ter sido derrotada e desapontada pela vida a ponto de seu valor e significado terem chegado a total nulidade. Caso contrário, ninguém terá motivos para empreender um estudo desse tipo. Além disso, nem mesmo deve aventurar por esse caminho como um curioso. Afinal, os riscos são reais e um trabalho começado e inacabado é mais danoso que viver uma vida simples seguindo bons preceitos.
Ser “esotérico” pode ser um obstáculo para o despertar
Vale notar uma crescente quantidade de pessoas que buscam experiências esotéricas profundas achando que resolverão seus problemas como um passe de mágica. Essas experiências vão desde o uso de psicotrópicos (em especial Ayahuasca), cursos de hipnose, cursos de PNL, esoterismo mágico, meditações transcendentais. A lista é enorme de métodos normalmente usados sem o correto discernimento e total desalinhamento cultural.
Esses “atalhos psicológicos” causam uma imensa confusão devido à crença inveterada em uma personalidade fictícia e às condições anormais que ela estabelece. A grande maioria não compreende em que tipo de busca entrou e o tamanho do esforço necessário para sair do outro lado. Em muitos casos, o que foi aberto não pode mais ser fechado. Não há mais caminho para trás. Porém, a pessoa não tem força ou educação para prosseguir sua jornada e assim a completar.
Outro grande número de pessoas ainda faz dessas experiências um reforço da grande ilusão de que já são o que procuram. A espiritualidade se torna uma indústria e um negócio. Também se torna um fetiche. Algo a ser possuído como uma mercadoria para estar “dentro do contexto” da sociedade. Somente mais uma imagem de que se é uma pessoa “evoluída e preocupada” com o mundo. Portanto, tais experiencias somente afastam ainda mais o ser real enquanto o mergulha no mais profundo esquecimento.
Despertar requer parar de sempre esquecer
Se alguém conseguir se observar por um mísero intervalo de tempo, logo perceberá sua incapacidade de lembrar de si mesmo. Tal “habilidade não percebida” de ser incapaz de lembrar o que há de mais valioso em si mesmo aparece de milhares de maneiras. Sua vida é marcada por incidentes significativos e com enormes contradições. A pessoa não se lembra do que decide. Não se lembra das promessas feitas a si mesmo ou muitas vezes às que faz aos outros. Dificilmente se lembra do que disse ou sentiu algumas horas ou alguns dias atrás. Assim que começa a trabalhar em alguma coisa logo isso o aborrece. Portanto, não sabe mais por que assumiu uma tarefa.
Você percebe como seu interesse muda e muda constantemente? Como se esquece do que pensou e o que disse? E esses fenômenos ocorrem com particular frequência em tudo o que diz respeito a si e que afeta especialmente todas as suas tentativas de trabalhar sobre si mesmo. Esse “esquecimento de si mesmo”, essa impotência para lembrar o que é verdadeiramente o seu “si mesmo”, é de fato, o traço mais característico e provavelmente a verdadeira causa de todo o seu comportamento.
Afinal, por não ter nenhuma base fixa em si mesmo, suas teorias, suas opiniões e seu comportamento estão em constante mudança e são totalmente desprovidos de precisão e estabilidade. A grande maioria das pessoas tem apenas uma estabilidade artificial sustentada por associações educadas. Hábitos estabelecidos e condicionamentos decorrentes de conceitos mentais como: “honra”, “honestidade”, “dever” e “lei”. Tudo criado artificialmente pela cultura circundante. Estes conceitos não têm relação entre eles. Exceto quando ocorre acidentalmente com o que seria sua verdadeira honestidade e sua verdadeira honra, se assim tivesse consciência de si mesmo.
Sem um centro permanente, como pode haver despertar?
Esse auto esquecimento contínuo resulta em uma ausência de qualquer ponto fixo autêntico dentro de si mesmo. Isso explica o comportamento geral do ser humano diante de si mesmo e de seu círculo de amigos. Também explica o modo como as pessoas são levadas por tudo ao seu redor. Estejam elas sabendo ou não. Em outras palavras, vivem em uma constante “identificação” com o que o atrai somado a imaginação contínua em que se envolve a cada momento. Assim, o auto esquecimento traz consigo a identificação e a imaginação. Portanto, esses são outros dois traços característicos do ser humano como ele é agora.
Quanto à identificação, as pessoas se esquecem de si mesmo e se perdem em todos os problemas que encontram pelo caminho. Sejam esses grandes ou pequenos. Seus interesses, sua atenção, são tomados por cada problema e tal pessoa “se esquece” completamente. Os verdadeiros objetivos que foram propostos ficam para trás disso. Assim que algo ocorre e prende seu interesse, a pessoa se “identifica” com essa coisa. Por um momento se dedica totalmente a isso, mesmo que seja apenas por uma fração de segundo. Isso vai até que algo mais aconteça, que capture sua atenção e mude seu interesse. A pessoa se ocupa com essa outra coisa, e o primeiro interesse adormece ou cai no esquecimento. Afinal, o ser humano está constantemente em estado de identificação com uma coisa ou outra. O que muda são os objetos sucessivos dessa identificação.
A mobilidade do grau de identificação é o contrário de sua intensidade de fixação. A fixação depende diretamente do tipo de atenção. Depende do grau de interesse que os eventos despertam. Às vezes, a atenção está dispersa e muda. Os objetos de identificação mudam constantemente (chamamos isso de “ser espontâneo”). Outras vezes a atenção é mantida cativa, fixa. Concentra todo o interesse e força da pessoa até que essa veja apenas aquele ponto particular. Assim, perde de vista todo o resto e se torna insensível a isso (chamamos isso de “concentração”). Em todo caso, o resultado é que a mesma pessoa é inteiramente tomada pelos acontecimentos exteriores e perde de vista o todo. Sendo que nesse “todo”, o que perde de vista mais particularmente é ele mesmo.
A condição natural da atenção é um obstáculo
A atenção é uma atenção em uma direção, inteiramente voltada para fora. Mas precisamos ter uma atenção em duas direções para não se esquecer de si mesmo no ato de viver. Logo a atenção deve estar voltada tanto para si mesmo quanto para o exterior. E isso é uma atenção de um tipo diferente que desconhecemos naturalmente. Não a temos desenvolvida naturalmente. Por isso somos geralmente incapazes de perceber sua ausência. Não obstante, todas as vezes que alguém começa a descobrir essa dupla atenção, essa atenção diferente é imediata e totalmente recapturada por atrações externas.
Dessa forma, naturalmente voltamos a se identificar. Assim, a identificação está em toda parte e sempre em nós. Está também nas formas mais sutis e perniciosas. Pessoas que conseguem experimentar picos e êxtases de estados de consciência logo se identificam com isso. O tal “mundo espiritual” se torna somente mais um objeto de identificação para a personalidade e suas hordas de personagens. Logo surgem os “sábios”, os “profetas”, os “iluminados” que falam, conversam com espíritos, andam sobre reinos inalcançáveis, que alcançam vazios e silêncios da alma, conversam com ETs, anjos e demônios. Atingem a “sabedoria” universal e desvendam o universo com mapas esotéricos e os mais diversos esquemas de cabala, eneagramas, grimórios e assim por diante.
Logo se “enfeitiçam” (raiz da palavra fetiche é feitiço). Sua atenção é capturada por esse mundo exterior esotérico. Ficam em uma necessidade de repetição contínua da experiência que lhes furta totalmente a atenção. No entanto é somente mais uma maneira de identificação com esses novos “personagens” diferentões e mágicos. Mas há também aqueles que nada percebem desse mundo alternativo. Isso não os impedem de se identificar com outros conceitos como auto-observação e seus “vários eus”. Logo, essas pessoas acham que estão “dominando o jogo” e o observador rapidamente se torna imagem identificada. Todo o esquema psicológico torna uma identificação.
Assim, a dificuldade em libertar-se dessas identificações é tanto maior quanto o valor dado a esses “atributos” na vida comum e em seu imaginário. Espontaneidade, zelo, entusiasmo, idealismo, inspiração, concentração e até paixão são valores socialmente reconhecidos. Não obstante, muito úteis para fazer um bom trabalho em qualquer campo. Porém, é um bom trabalho automático “com considerável lucro”. Mas o que tal pessoa pode fazer que realmente corresponda a si mesmo e a “sua” vida? Talvez seja somente um bom robô social, mas não é um ser humano e nem é uma “individualidade” humana.
Não se identifique… e não pense em um elefante rosa depois de ler essa frase
A identificação é um dos inimigos mais terríveis para aquele que assumiu o árduo trabalho de ser si mesmo. A todo momento em que se acredita estar lutando contra ela, ainda estaremos em suas garras. Quanto mais se dedica seu tempo, seu interesse, sua atenção em trabalhar sobre si mesmo, sua busca incessante por respostas e conhecimentos, maior é o risco de identificação. Assim, qualquer pessoa que deseja libertar-se de suas identificações deve estar constantemente em guarda. Para ser ele mesmo deve primeiro se lembrar de si mesmo e parar de se identificar. Enquanto isso não ocorre é apenas um escravo de tudo que lhe ocorre ao seu redor. Portanto, tudo pode lhe vir acontecer pelas leis do acaso e do acidente.
Particularmente, esse é um processo inevitável. Não há como simplesmente compreender e parar de uma hora para outra todo esse processo de identificação. Na verdade, a grande maioria das vezes que alguém é submetido a um processo forçado e repentino de não-identificação estará somente substituindo o objeto de identificação. O personagem dessa pessoa pode sair de alguém cético e rígido para outro mais “esotérico” e flexível. Mas isso ainda são apenas outros personagens. Isso não é transformação.
São necessários inúmeros choques e o entendimento correto de como opera a psique humana. Tudo somado a uma constante vontade persistente. É necessário começar a compreender que não é possível não se identificar na vida. A atenção precisa desse mecanismo para atuar na vida. O que podemos aprender é ser menos apegados a certas histórias e imagens. No entanto, devemos compreender que todo esse exercício se trata do plano interior e não do exterior. Essa é a chave.
Me lembro de dois contos Zen sobre isso. O primeiro é sobre um aluno que pergunta ao mestre se ele já estava pronto. Afinal ele se vestia de branco, comia somente vegetais e dormia numa cama de palha igual ao seu mestre. O mestre pede para ele ver um cavalo branco no pasto e assim responde: esse cavalo também veste branco, come somente vegetais e dorme em uma cama de palha. O outro conto é sobre um aluno que pergunta ao mestre quanto tempo ele gastaria para atingir o entendimento. O mestre responde 10 anos. Daí o aluno pergunta: mas e se eu me dedicar arduamente com todos os meus esforços? O mestre responde 20 anos.
Ainda vou continuar a explorar os obstáculos do despertar no próximo artigo. Uma ótima semana de estudos a todos.
Lauro Borges
Esse artigo faz parte de uma série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.
Minha pergunta é : quem é esse que desperta?
O conto do cavalo acho que resume a mensagem muito bem. A vida é oque vivemos agora. Os cursos esotéricos apenas ajudam mas se a gente não está aqui intensamente no fluxo na graça na atenção, se não está aqui nos boletos nos problemas mas com graça fluxo atenção, se não for assim, a gente está vivendo aonde e para quê?
Não basta copiar. Não basta fazer igual. É necessário trazer entendimento. Cursos bons com pessoas sérias são maneiras de ganhar entendimento e vivência. Mas nada vai fazer o trabalho por você.