Quando nos propomos a trabalhar o nosso ser, estamos fazendo um compromisso em se submeter a sofrimentos desnecessários à vida. Temos que aprender a enxergar nossas sombras. Toda a incoerência que habita a nossa alma. Vemos que não somos tão bonzinhos e também nem tão malvados como gostaríamos de ser.
Vamos ver que nadamos em um mar de ilusões. De pensamentos descoordenados. Vivemos grande parte de nossa vida sem uma direção, objetivo e propósito. O Trabalho joga essa luz. Uma bóia de salvação. Porém, ao mesmo tempo bate um certo desapontamento consigo mesmo. Parece que tudo que fizemos foi ridículo e em vão.
Mas isso também é um erro. É muito difícil que alguém só tenha feito besteira na vida. E mesmo que tenha feito muitas besteiras ainda assim não significa que foram todas ruins. As nossas paixões dão uma cor e vida a personalidade. O Trabalho não visa transformar ninguém em um robô. É tudo uma questão de aprender o que é o Trabalho.
Em muitas tradições o Trabalho é visto como uma ação exterior. “A mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta”. Sim, devemos sempre buscar agir como somos de verdade. Mas infelizmente o processo de trabalhar internamente é mais próximo do ditado “temos de trocar o pneu furado com o carro andando”. Não dá para apertar um botão de reset ou entrar numa concha e achar que vai sair borboleta transmutado do outro lado. Então, temos de conviver com nossas virtudes e defeitos por um bom tempo, até que possamos realizar transformações mais profundas.
O que vai modificando com o tempo é essa relação do “eu que observo” com o “eu que vive”. Todos podemos trabalhar em si. Isso porque podemos observar algo e aprender sobre esse algo. A capacidade de aprender é um fenômeno inato de todos os seres humanos. É um dom dado e distribuído igualitariamente.
Porém, a capacidade de observar a si não é um ato natural e essencial para a vida. Ainda mais a capacidade de se ver como um todo em seus três centros. É uma ação tão desconfortável e embaraçosa que exige muita energia. Não é possível fazer isso o tempo todo e nem é necessário. No entanto, precisamos de tempos em tempos tomar essa ação deliberadamente.
É como dirigir um carro por uma via que não conhecemos. Você precisa saber onde está e de um mapa que lhe diz o percurso. Antes de tudo você precisa saber para onde está indo. Onde você quer chegar?
Há tantas fantasias e ilusões no caminho espiritual quanto em qualquer caminho. O objetivo é só conhecer a si. Não há mais nenhum outro objetivo além desse. O resto é subterfúgios para poder fazer isso. Podemos usar a imaginação para tentar entender isso melhor.
Se imagine como um bebê que simplesmente aparece em uma sala toda branca. Daí esse bebê recebe um alimento nem frio e nem quente, de gosto neutro. Só existe essa sala vazia e branca. Você cresce, torna-se uma criança, um adulto, envelhece e morre nessa sala branca. Nada além de um vazio branco.
O que você aprende nesse lugar? O que te motiva? O que te faz crescer ? O que te motiva a se mover ? Provavelmente nada. Não há nada a ir e nem a buscar. Esse é um exercício que você precisa distinguir essa imagem criada de você que não é essa história. Se você conseguiu criar essa imagem de maneira apropriada provavelmente chegará a conclusão de que essa é uma vida sem sentido e propósito. Nada foi aprendido e realizado.
Não há associações, não há nada criado e nada para se transformar. Somos uma máquina de transformação de energias. Nada mais que isso. Temos uma capacidade única de ir além do mínimo necessário exigido pela vida. Afinal, podemos executar a auto reflexão. Aparentemente somos os únicos animais com essa capacidade cognitiva.
No entanto, isso traz muito mais complexidade ao ser humano. Os animais sabem exatamente o que precisam fazer. Somente precisam executar suas rotinas instintivas. Por isso não sofrem além do necessário. Já o ser humano é provido da capacidade de fazer associações. O mais importante ainda: somos capazes de transformar essas associações.
Dentro do Quarto Caminho não interessa o “o quê” está sendo feito. O que interessa é o “como”. Você pode ser um dançarino, um guarda, um motorista, um engenheiro, mulher, homem ou qualquer coisa. O que interessa é se você aprendeu a criar esse relacionamento entre o mundo exterior e o seu mundo interior.
O ponto é que usamos o mínimo necessário da nossa auto reflexão. Somente o mínimo necessário para viver e um pouco mais para gerar energias superiores que são consumidas em nosso inconsciente para sua regulação. Assim, muitos dos seres humanos simplesmente vivem com muito pouco conhecimento sobre seu verdadeiro mundo interior. É como se vivessem dentro daquele quarto branco. A consciência “não conhece a ti mesmo” se não realiza a ação de se observar.
Externamente não nascemos em um quarto branco. Nascemos em um mundo onde somos bombardeados por impressões o tempo todo. O feto, mesmo na barriga de sua mãe, já recebe um grande volume de impressões.
Todas essas impressões são somadas a um arcabouço de soluções já pré programadas vindas de nossa biologia e hereditariedade. Por exemplo, reagimos instintivamente se vemos uma corda enrolada que parece uma cobra. Não há tempo para pensar “poxa será que é mesmo uma cobra?”. A milênios o corpo já criou uma resposta automática através de inúmeras interações entre nossos ancestrais e as serpentes.
O que não fazemos de forma automática é atualizar essas associações à medida que recebemos novos choques de impressões. Isso é o Trabalho.
Gurdjieff explica isso em seu livro “Relatos de Belzebu”
“Novamente, no seu caso, seus órgãos externos e internos foram criados por nosso Criador Comum de maneira correspondente. Você tem pés para andar e mãos para preparar e levar a comida necessária. Seu nariz e os órgãos ligados a ele estão tão adaptados para que você possa absorver e transformar em si mesmo aquelas substâncias cósmicas que servem, em seres de três cérebros como você, para revestir os dois corpos-do-ser superiores – em um dos quais repousa a esperança de nosso Criador Comum que Tudo Abraça, por ajuda em Sua necessidade de realizar o que Ele previu para o bem de tudo o que existe.
…
Quanto a você, embora tenha sido criado para o mesmo propósito de existência cósmica dos planetas, você foi criado também como um “campo de esperança” para nosso Todo-Gracioso Criador Comum, em outras palavras, com a possibilidade de revestir em sua presença com o Sagrado Superior para cujo surgimento todo o nosso mundo agora existente foi criado.
No entanto, apesar das possibilidades dadas a você, isto é, apesar de você ter sido criado com três cérebros e, portanto, capaz de mentação lógica, você não usa esta propriedade sagrada para seu propósito predeterminado, mas a manifesta como “astúcia” para com os seus entes e outras criaturas como, por exemplo, seu próprio burro.”
Relatos de Belzebu para seu neto – Gurdjieff
Todos os sistemas de religiões são somente meios de auxílio para realizar a arte da auto atualização. Somos a própria matéria prima que precisa ser trabalhada. Então, julgamentos e fantasias somente criam maior afastamento entre o verdadeiro Trabalho e a realidade interior. De nada adianta se apegar ao lado negativo do Trabalho.
Por outro lado, acessar nossas falhas é um importante passo no trabalho interior. Gurdjieff chama isso de “vergonha orgânica”. É o que nos permite identificar nossos erros. Assim, não podemos evoluir se não sentimos remorso por nossos erros. Então, ao invés de se sentir decepcionado com suas falhas, veja a oportunidade de autoconhecimento e crescimento dada pelo Trabalho. Afinal, o que interessa é somente acessar a nossa matéria prima interna que iremos transformar. Dessa forma, o lado negativo do Trabalho é o maior tesouro para aquele que já aprendeu o significado do Trabalho.
Um ótimo começo de semana para todos.
Lauro