Buda ensinou que o caminho do crescimento interior é dificultado por obstáculos. Tais obstáculos nascem do nosso vínculo com o ego corpóreo. Temos um ego no corpo, instintos de sobrevivência que foram treinados por milênios de evolução. O prazer das sensações e a necessidade de se sentir seguro são forças muito poderosas. Afinal, sem esse “encantamento de Gaia”, restaria a dureza e a loucura que vivemos. Logo, é necessário um encantamento pela vida para se manter vivo enquanto não há algo interior para se firmar.
É fácil notar que os obstáculos descritos por Buda se apresentam de uma forma crescente. São deixados os obstáculos mais próximos do ego e vão se aproximando dos obstáculos mais próximos da alma. Nossa alma possui muitos obstáculos para serem transformados. Carregamos histórias de gerações familiares, complexos coletivos e, porque não dizer, histórias de vidas passadas. Definitivamente estamos longe de entender o fenômeno da consciência. Todavia, podemos observar a ação de tais histórias e obstáculos assombrando nossas vidas o tempo todo. Um filme constante de um só roteiro. Ao fim, a alma nem sabe mais exatamente como chegou nessa condição e muito menos como sair dessa enfadonha repetição mecânica.
A psicologia ocidental moderna, pelas mãos de Freud, acredita na importância de se saber o porquê dos eventos. Se faz necessário entender qual a causa de tal comportamento repetitivo. No entanto, uma causa sempre terá outra por detrás dessa. Então, não é a causa que mais interessa. O que mais interessa é se fazer consciente perante a situação. É entender o que se faz e as consequências disso.
Porém, ao mesmo tempo que Freud ajudou a desmistificar muito do conteúdo do inconsciente, ele também ajudou a afastar a busca pelo mistério. A sociedade moderna se afastou de conceitos menos abstratos como propósito de fé das religiões para afirmar ainda mais que não há nada além de causa e efeito.
No entanto, o trabalho da psicologia ocidental auxiliou a trazer melhor entendimento sobre o que é a nossa consciência. Ao fim, somos muito mais regidos por forças do inconsciente e comportamentos mecânicos repetitivos do que costumamos chamar de estar consciente. Gurdjieff dizia o mesmo. Ele dizia que precisamos entender que o nosso inconsciente é o nosso consciente; e o que chamamos de estar consciente é na verdade a ação do nosso inconsciente.
Mas não adianta ganharmos conhecimento sobre tudo isso se ao final continuamos sem saber o que fazer com toda essa informação. O ser humano é um ser vivo em movimento. Estamos sempre indo de um lugar para outro com algum objetivo. Se esse ser humano não tem um objetivo maior só lhe restará tornar-se o próprio objetivo. Então, trabalhar a consciência sem trabalhar a criação de um propósito maior torna o trabalho ainda mais caótico.
Entretanto, atingir qualquer objetivo exige um preço a se pagar. Para atingir qualquer objetivo é necessário dedicar tempo e esforço. Abrir mão de prazeres momentâneos para construir um resultado duradouro. Veja por exemplo o tanto que um atleta olímpico precisa abrir mão para conseguir ter o corpo e mente na melhor de sua forma. Contudo, o que abrimos mão torna-se prazeres não realizados. Cada prazer não realizado gera um sofrimento. No entanto, esse sofrimento é consciente e suportado por sua vontade, se e somente se, existe um propósito.
Ao escrever esse artigo me deparei com dois textos que me chamaram a atenção. O primeiro texto é uma entrevista com Ian MacFarlene, criador de um dos primeiros grupos online de estudo e trabalho de Gurdjieff. Ian diz:
“Como Gurdjieff disse em “Contos de Belzebu”, o Trabalho Consciente e Sofrimento Intencional são os dois pilares do Trabalho. Trabalho Consciente refere-se àqueles aspectos do Trabalho cujo objetivo é desenvolver e harmonizar nossos três centros. Práticas básicas desse tipo são encontradas em muitas tradições orientais e ocidentais. O Sofrimento Intencional é de outra ordem, pois visa transformar os efeitos do órgão Kundabuffer, basicamente o egoísmo, para que os corpos superiores do Ser possam crescer.
Esse crescimento é realizado com o resultado transubstanciado da força reconciliadora que resulta quando colocamos nossas forças de afirmação sobre nossas forças de negação. Este processo é baseado na lei de três – o superior se mistura com o inferior para atualizar o meio. Gurdjieff fala desse processo muitas vezes de muitas maneiras diferentes ao longo dos Contos de Belzebu.
O Buda ensinou que a causa do sofrimento é o desejo. O desejo surge do egoísmo. A frustração de nossos desejos causa sofrimento. Desejamos ser úteis, admirados, superiores, ricos ou até espirituais. Quando esses desejos são frustrados, sofremos de raiva, ressentimento, ganância, vaidade, depressão, etc. Podemos transformar essas forças negativas e emoções negativas com forças de afirmações, levando às reconciliações que alimentam nosso Ser.
Trabalhar com a força de negação dessa maneira requer resistência, sutileza e criatividade. Esta é a área preeminente onde a flexibilidade e criatividade das Tríades são úteis para conceber novas abordagens para ver através das armadilhas sutis do ego e conceber novas afirmações para transformar a força de negação.”
Também me deparei com esse trecho de reuniões de Gurdjieff com seus alunos. Gurdjieff é interrogado por um aluno que diz não conseguir manter-se atento as suas tarefas.
Gurdjieff: Depois de começar, você rapidamente para. É preciso se conduzir a um determinado estado. Para que isso tome forma (forme), é preciso fazer, fazer e fazer. Depois, será (c’est) indestrutível. Todos os fatores devem ser criados assim. Aos poucos é preciso fazer um esforço consciente até que esteja formado. Por alguma coisa, é o mesmo.
Aboulker: O que me impede é uma voz que diz: “E eu?”
Gurdjieff: Então, que tudo seja para Mim, para o verdadeiro Eu, não para a masturbação, mas para a verdadeira felicidade. Hoje, eu (tenho que) sofrer. Amanhã, terei tudo. Você trabalha para amanhã, para o futuro. Mas amanhã também, serei eu. Se você levar isso a sério, esta parte entenderá que você está trabalhando para o Eu verdadeiro. Hoje você sofre conscientemente em vez de sofrer inconscientemente. Você vai sofrer o dobro hoje para que amanhã você tenha o dobro de felicidade. Conscientemente, você sofrerá porque deseja conscientemente desfrutar dessa verdadeira felicidade. Até agora, você sofreu inconscientemente, e hoje constata isso. Você não deseja ter esse sofrimento inconsciente amanhã, e por isso você (está disposto a) sofrer hoje. Os próprios cães têm cérebro. Esta parte em você vai entender. Repita isso para você mesmo com frequência. Você tem uma espécie de cachorro ou gato dentro de sua cabeça. Quando você fala, quando você esquece, ele imediatamente late e se torna seu mestre. Seu verdadeiro Eu, seu Eu, põe o rabo entre as pernas e se torna escravo daquele cachorro.
“Você trabalha para amanhã, para o futuro. Mas amanhã também, serei eu.”
Boa semana de estudos a todos vocês.
Abraços,
Lauro