Não seja cínico Gurdjieff!

Mestre Gurdjieff se denominava como um cínico. Todavia, esse termo refere-se ao cinismo. Ou seja, um movimento filosófico que tem suas raízes em Sócrates. Mas qual a importância de se saber isso? Um sistema filosófico funciona como uma referência, um cabo guia, que nos ajuda a interpretar, refletir e representar o mundo. O objetivo da filosofia é usar do pensamento crítico para observar a realidade e interpretar os acontecimentos da vida além da aparência trivial. Então, é aprender a questionar do porquê as coisas são de determinadas formas. Também, cabe a um sistema filosófico propor saídas, alternativas, condutas éticas e morais que venham provocar uma resolução dos pontos de conflito.

Diógenes, o Cínico

Podemos realmente encontrar várias passagens na obra e relatos da vida do senhor Gurdjieff que justificam considerá-lo um adepto ao cinismo. O Cínico Diógenes, o mais icônico dos filósofos cínicos, quando perguntado de onde ele era respondeu “eu sou um cidadão do mundo”. Para Diógenes deveríamos viver de acordo com a natureza e rejeitar tudo que é convencional. Somente assim se atinge uma mente elevada e virtuosa para todos os seres humanos. Para os cínicos, todo acúmulo material do mundo não se compara com a felicidade e moral implicada ao retorno a simplicidade da natureza. Diógenes dormia em um barril e não possuía bens. Os cínicos eram adeptos a uma vida extremamente simples. É dito que Diógenes quebrou a única caneca que possuía ao ver uma criança beber água utilizando as mãos.

É fato que senhor Gurdjieff pregava o sentimento do não apego a tudo que é material. No entanto, é fato que ele não menosprezava a boa vida. Ao contrário, cobrava bom dinheiro e via isso como uma maneira de aprender na vida, estar na vida e poder usufruir da vida. Então, a única semelhança nesse ponto com os cínicos está no não apego psicológico e a valorização do corpo moral do ser.

“Outros cães mordem seus inimigos, eu mordo meus amigos para salvá-los” (Diógenes)

Outro fato interessante é que existem muitas anedotas relativas ao comportamento de Diógenes como um comportamento de um cão. O próprio termo Cinismo possui a raiz grega “cino” que significa cachorro (ex: cinofilia = criação de cães). Assim, Diógenes se orgulhava da virtude canina. Para ele, o ser humano vive uma vida artificial e hipócrita. Dessa forma, seria bom estudar os cães. Os cães vivem no presente, sem nenhuma ansiedade. Além disso, não possuem filosofias pretenciosas e abstratas. Soma-se ao fato de que cães sabem instintivamente quem é amigo e quem é inimigo. Logo, cães dão avisos honestos com seus latidos na presença da verdade.

Diógenes, cães e a lanterna que busca um homem verdadeiro

Diógenes disse: “Eu bajulo aqueles que me dão qualquer coisa, eu grito com aqueles que se recusam e eu cerro meus dentes em patifes”. Um leigo ao ler essa frase pode interpretar que devemos viver e morrer como um cão. Porém, Diógenes era famoso por sua ironia. Deve-se entender que viver como um cão é viver sem condicionamentos sociais, pela verdadeira liberdade interior. Assim, poder viver pelas próprias ações naturais as quais estão soterradas por toda falsidade existencial. No entanto, para isso devemos usar a qualidade que nos distingue dos demais animais, a razão humana.

A ligação da filosofia ao termo “cão” também ocorre como uma maneira de expressar o culto a indiferença e o culto a não vergonha. Um cão não se importa de fazer suas necessidades físicas e biológicas em praça pública, em dormir no chão. Além disso são bons guardas, o que significa que zelam rigorosamente em defender sua escola filosófica.

Cão e Gurdjieff

Podemos encontra em diversas passagens Gurdjieff utilizando frases como “você nasceu como um cão”, “viva como um cão e morra como um cão”, “nascer como um cachorro e morrer como parte de Deus” e “não morrer como um cão”. Isso é um forte sinal da influência cínica em sua vida. Soma-se o fato de muito jovem ter saído de casa, feito fortuna e perdido por diversas vezes. Assim, não se apegava fortemente aos bens materiais. Pregava a liberdade do pensamento, do não condicionamento do ser. Semelhantemente como Diógenes, gostava de “morder” seus amigos para despertá-los. Era tão irônico e crítico como Diógenes.

Em suma, ambos defendiam a necessidade de aprender a pensar por si. No entanto esse ato deve ser um pensar investigativo com rigor, com liberdade e sem preconceitos, vergonhas e medos. Eram mestres descarados, que pensavam por si e não se traiam por sentimentos de vergonha impostas pela sociedade.

A outra corrente Socrática, os Estoicos

Os estoicos eram uma corrente filosófica com muitas similaridades aos cínicos. No entanto, eram menos radicais quanto a renúncia material. Todavia, pregavam que a renúncia deveria existir como forma de não apego. Tinham como filosofia de que o sofrimento é uma ilusão, por mais intenso que seja. Como similaridade aos cínicos pregavam a necessidade de se levar uma vida virtuosa de acordo com as leis da natureza. Apesar de enxergar que a vida é dor e sofrimento, não preconizavam a necessidade de se criar sofrimentos desnecessários. Buscavam viver a vida sempre exigindo a cada dia de si a melhor versão.

Encontramos muitas passagens onde Gurdjieff diz que não devemos criar sofrimentos desnecessários em nossa vida. No entanto, devemos aprender usar o sofrimento como um caminho de purificação, pois, faz parte de uma polaridade das forças de afirmação e de negação. Sem o sofrimento não haveria motivação para o progresso, pois, seriamos tomados pela preguiça e comodismo. Tanto que Gurdjieff dizia que se a vida está fácil demais, encontre um problema para você.

O sofrimento Estoico

Os estoicos viam muitas das regras e construções humanas como parte natural e necessária para a vida. Dessa forma, eram contra o ascetismo cínico. Da mesma forma, Gurdjieff entendia da necessidade de se manter o “bon tom” e respeitar as culturas locais. Os estoicos valorizavam a vida social e a participação da vida pública. Logo, viver em sociedade é respeitar uns aos outros, independente de sexo, classe e idade. Assim como devemos aceitar tudo que está fora do nosso controle, incluindo o comportamento dos outros. Não buscavam quebrar normas sociais como os cínicos e sim em aceitá-las. Portanto, diziam que não devemos assumir uma tarefa impossível de mudar a todos para um diferente modo de vida. Portanto, encontramos mais semelhanças estoicas nos discursos de Gurdjieff.

Os estoicos rebatiam o ascetismo cínico acreditando que a melhor maneira de testar o não apego aos bens materiais é possuindo os mesmos. Assim, um estoico deve constantemente vigiar sua ansiedade e desejos excessivos, vivendo de uma maneira mais racional. Ao analisar a frase de Epítetos

“Pratique, portanto, para dizer francamente a cada aparência severa:‘ Você é apenas uma aparência, e não o que parece ser ’. Em seguida, examine-a e teste-a pelas medidas que você tem, primeiro e principalmente se referem às coisas que estão sob nosso controle ou às coisas que não estão sob nosso controle. E se se tratar de coisas que não estão sob nosso controle, esteja preparado para dizer: ‘não é nada para mim’. ”

Epítetos

Auto-observação estoica

Essa frase muito lembra os exercícios de auto-observação e não identificação propostos por Gurdjieff. Não se apegue e chame de “eu” tudo que se manifesta em ti. Assim, a pratica estoica está na mente, no ser, e não em um lugar. Como disse Seneca: há uma diferença entre nós e outras escolas: nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os sobrepõem. Os outros sábios não os sentem. Mais uma vez, Gurdjieff se aproxima mais de um estoico que de um cínico.

Conclusão

Esse artigo não tem objetivo “lacrar” se o senhor Gurdjieff era um estoico ou cínico. No entanto, podemos notar profundas influências das duas correntes de pensamento em sua filosofia. A base filosófica helenista o permitiu enxergar os múltiplos sistemas religiosos e espirituais dos quais entrou em contato. Assim como, Gurdjieff foi além do simples pensamento filosófico ao integrar conceitos modernos de psicologia e terapias holísticas ocidentais. Espero assim ter contribuído com um melhor entendimento sobre quem foi o misterioso Mestre Gurdjieff. Ótimos estudos para todos vocês!

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