O Poço Iniciático serve como um magnífico exemplo de uma estrutura repleta de simbolismo e arquétipos, destacando-se como um modelo primoroso de Legomonismo. Mas, o que isso realmente implica? Para decifrar esse mistério, precisamos mergulhar no funcionamento das antigas tradições iniciáticas. Essas tradições, conhecidas como “Arte Real”, oferecem um ponto de partida essencial para essa compreensão.
A Arte Real
A “Arte Real”, no contexto das tradições iniciáticas antigas, refere-se à busca sagrada pelo conhecimento, sabedoria e iluminação espiritual. A tradição, imbuída de profundo simbolismo e ritual, permeou várias culturas e épocas ao longo da história.
A Arte Real é frequentemente associada à Maçonaria, onde é vista como um conjunto de práticas e ensinamentos que guiam o iniciado em sua jornada de autodescoberta e iluminação. O termo ‘Arte Real’ dentro da Maçonaria é muitas vezes entendido como sinônimo da ‘Arte da Construção’ – um ofício que visa a construção do templo interior do indivíduo.
Na Alquimia, outra tradição iniciática, a Arte Real representa a busca pelo Lápis Philosophorum, a Pedra Filosofal, que promete a transmutação de metais comuns em ouro – uma metáfora para a transformação espiritual do indivíduo, do estado bruto para o iluminado.
Os Mistérios Elêusis da Grécia Antiga também exemplificam a tradição da Arte Real. Nestes rituais de iniciação, os participantes passavam por uma série de provações e experiências místicas, que culminavam numa revelação sagrada, proporcionando uma profunda compreensão da vida, morte e renascimento.
Em todas essas tradições, a Arte Real serve como um meio de se alcançar um estado superior de consciência e entendimento – um processo que é marcado por rituais simbólicos, provações e o desvelar de verdades escondidas.
Gurdjieff e a prática da Arte Real
Em sua obra, Gurdjieff se refere à “Arte Real” como uma prática que integra a esfera física, emocional e mental do ser humano para alcançar um estado de consciência mais elevado. Ela é uma viagem de autodescoberta e autoaperfeiçoamento que requer um compromisso contínuo para a busca da verdade.
Gurdjieff, assim como os maçons e os alquimistas, vê a Arte Real como um processo de transformação interna. Mas, para ele, essa transformação não é apenas metafórica – ela é literal e física. Gurdjieff acreditava que através de práticas rigorosas e disciplinadas – que ele descreveu como “trabalho sobre si mesmo” – um indivíduo poderia transformar sua energia interna de forma a desenvolver uma consciência mais profunda e expandida.
Em seu sistema, conhecido como o Quarto Caminho, Gurdjieff ensinou que a maioria das pessoas vive em um estado de “sono” psicológico. Ele propôs que a Arte Real é a ferramenta para acordar desse sono, para se tornar totalmente presente e consciente.
A “dança dos movimentos”, como Gurdjieff a chamava, é uma das principais práticas de sua Arte Real. Através desses movimentos e danças precisos, os alunos poderiam acessar e integrar diferentes níveis de seu ser – o físico, o emocional e o mental.
Portanto, a Arte Real de Gurdjieff, como outras tradições iniciáticas, é uma prática intencional e disciplinada que busca a autotransformação e a iluminação.
O Legomonismo e a Arte Real
No livro “Relatos de Belzebu a seu Neto”, Gurdjieff descreve o legomonismo como um método de transmitir conhecimento através de formas artísticas e simbólicas. O teatro, em particular, desempenha um papel crucial na transmissão de ensinamentos esotéricos em sua visão. Por meio de peças teatrais, os participantes poderiam vivenciar diretamente os princípios espirituais, incorporando-os em sua própria experiência de vida. Essa é a essência da Arte Real de Gurdjieff, onde a vivência é mais importante do que o conhecimento teórico.
Essa prática tem paralelos em muitas outras tradições espirituais. No Budismo, por exemplo, o uso de mandalas e thangkas – pinturas detalhadas que representam cenas e figuras budistas – serve para transmitir ensinamentos profundos e complexos de forma acessível e experiencial. No Sufismo, as danças giratórias dos Dervixes girantes funcionam de maneira semelhante, proporcionando uma experiência direta do divino.
No Cristianismo, especialmente nas tradições místicas e gnósticas, encontramos o uso de parábolas, alegorias e rituais simbólicos para transmitir verdades espirituais. A própria Eucaristia é um exemplo notável disso, em que os participantes comem e bebem símbolos do corpo e do sangue de Cristo para vivenciar a comunhão com o divino.
Em todas essas tradições, o objetivo é facilitar uma experiência direta da realidade espiritual, em vez de simplesmente transmitir conhecimento teórico. Gurdjieff, em sua Arte Real e prática do legomonismo, incorpora essa abordagem experiencial, usando a arte e o simbolismo para despertar os participantes de seu “sono” psicológico para a plena consciência de sua realidade interior e exterior.
Poço Iniciático, um palco para a Arte Real
O Poço Iniciático, um exemplo notável de Arte Real, incorpora diversos elementos essenciais para a execução de um espetáculo iniciático.
- O palco: Este é o cenário onde a jornada do neófito se desenrola. No caso do Poço Iniciático, o próprio poço serve como esse palco, com seus símbolos e decorações arquetípicas que fornecem um pano de fundo rico para a iniciação.
- O neófito: Este é o aspirante a iniciado, o indivíduo que busca conhecimento e a ‘luz da consciência’. Ele se dispõe a embarcar na jornada, guiado pelo Mestre.
- O Hierofante ou Mestre: Este é o guia espiritual, responsável por liderar o neófito através do processo de iniciação, concedendo a ele a luz do conhecimento.
- O ritual: Este é o meio pelo qual a história arquetípica é contada. Uma alegoria é utilizada para esse propósito, ou seja, uma representação simbólica que transmite uma mensagem ou ensinamento através de uma história. A alegoria permite que verdades complexas e profundas sejam transmitidas de uma maneira que pode ser entendida intuitivamente, e não apenas racionalmente.
O objetivo final do ritual é que o neófito receba uma impressão profunda em seus três centros inferiores (instintivo, emocional e mental), possibilitando a abertura de seu centro emocional superior. Este é um processo que geralmente envolve uma forma de redenção, que só é alcançada através da remissão dos pecados. O neófito deve também realizar um sacrifício, simbolizando a entrega de si mesmo a uma força superior. Assim, o neófito é agraciado com a ‘luz da consciência superior’, recebendo as influências da razão objetiva do centro intelectual superior.
A alegoria do Inferno de Dante
Em nosso artigo anterior, exploramos o simbolismo e a rica tapeçaria de significados ocultos do Poço Iniciático de Sintra, considerando-o um exemplo notável de Arte Real. Continuando a trama dessa tapeçaria, um pensamento provocante surgiu: a descida ao Poço Iniciático se assemelha em certa medida à jornada de Dante Alighieri através do Inferno em sua Divina Comédia.
O Poço Iniciático, com sua estrutura em espiral descendente de nove patamares, culminando numa câmara subterrânea, tem um paralelo intrigante com a estrutura do Inferno de Dante – um poço abissal de nove círculos de sofrimento que leva ao centro da Terra, o trono de Satanás. Ambos representam uma jornada descendente, um mergulho no submundo, uma exploração das profundezas mais obscuras do ser.
Nesta analogia, cada patamar do Poço Iniciático pode ser correlacionado a um círculo do Inferno de Dante, cada um simbolizando um pecado específico e seu castigo correspondente. A jornada infernal de Dante é um percurso através dos vícios humanos e suas consequências destrutivas. Da mesma forma, a descida ao Poço Iniciático pode ser interpretada como um processo de confronto e purgação dos aspectos sombrios do self, um eco dos ensinamentos de Gurdjieff e Jung.
Portanto, assim como na Divina Comédia de Dante, a descida ao Poço Iniciático pode ser vista como um rito de passagem, uma iniciação ao autoconhecimento, onde o neófito enfrenta seus demônios internos, purga seus pecados e busca a redenção através do sacrifício e da entrega à uma força superior. É uma jornada do ego ao self, da escuridão à luz da consciência superior.
Divina Comédia e o Poço Iniciático
Na Divina Comédia, Dante é conduzido por Virgílio, um símbolo da razão humana, através do labirinto de pecados e tormentos. Este paralelismo pode ser traçado com a jornada do neófito no Poço Iniciático, onde este também é guiado por um mestre ou guia espiritual. Ambas as jornadas, embora solitárias em sua essência, são mediadas e apoiadas por uma figura sábia e iluminada, enfatizando que a busca pelo autoconhecimento e a transformação não são empreendimento solitários, mas são trilhados com a assistência de um mentor experiente.
Ao término de suas respectivas jornadas, tanto Dante quanto o neófito emergem transformados. Dante, tendo atravessado o inferno, finalmente emerge para vislumbrar as estrelas mais uma vez, um símbolo de esperança e redenção. De forma semelhante, o neófito que emerge do Poço Iniciático, tendo enfrentado e superado os desafios e provações de sua jornada interior, pode alcançar uma nova compreensão de si mesmo e do mundo. Esta renovação de consciência, alcançada através da travessia dos vários patamares de autodescoberta e transformação, marca o clímax de sua iniciação, testemunhando o nascimento de uma nova luz de consciência em seu ser.
Os nove níveis do Poço e os nove infernos de Dante
Desdobrando a analogia entre o Inferno de Dante e o Poço Iniciático de Sintra, é possível estabelecer conexões entre os nove círculos do Inferno e os nove patamares do Poço, embora as interpretações possam variar conforme o contexto e as crenças individuais.
- Limbo (Inferno de Dante) / Primeiro Patamar (Poço Iniciático): No Limbo, Dante encontra os virtuosos não batizados e os grandes filósofos da antiguidade. De maneira análoga, no primeiro patamar do poço, o neófito inicia sua jornada, abandonando o mundo conhecido, adentrando em uma espécie de “limbo” entre a superfície e as profundezas desconhecidas.
- Luxúria / Segundo Patamar: A punição dos luxuriosos no Inferno de Dante é serem lançados violentamente de um lado para o outro por ventos impiedosos, sem descanso. No segundo patamar, o neófito pode se deparar com o desafio de confrontar seus desejos desenfreados e paixões descontroladas.
- Gula / Terceiro Patamar: No Inferno de Dante, os glutões são forçados a deitar-se em uma lama repulsiva, sob uma chuva incessante de detritos e neve. Nesta etapa, o neófito pode ser desafiado a reconhecer e superar o excesso e a indulgência.
- Avareza / Quarto Patamar: Dante encontra os avarentos e os pródigos, condenados a empurrar pesos imensos uns contra os outros. Este patamar pode representar o desafio de equilibrar o material e o espiritual, o ter e o ser.
- Ira / Quinto Patamar: No Inferno, as almas iradas lutam umas contra as outras na água lamacenta do rio Estige. No quinto patamar, o neófito pode ser desafiado a confrontar e superar a raiva e a hostilidade.
- Heresia / Sexto Patamar: Dante encontra os hereges presos em túmulos flamejantes. Aqui, o neófito pode ser confrontado com a necessidade de questionar dogmas e buscar sua própria verdade.
- Violência / Sétimo Patamar: No Inferno de Dante, os violentos sofrem em um rio de sangue fervente. No sétimo patamar, o neófito pode ser desafiado a enfrentar a violência em suas várias formas, seja ela física, emocional ou espiritual.
- Fraude / Oitavo Patamar: Dante encontra os fraudulentos, que são punidos de diversas maneiras. Aqui, o neófito pode ser desafiado a confrontar a desonestidade e a traição, seja de outros ou de si mesmo.
- Traição / Nono Patamar: No último círculo do Inferno, Dante encontra os traidores, aprisionados no gelo. No nono e último patamar, antes de alcançar a câmara subterrânea, o neófito pode ser desafiado a enfrentar a traição em suas formas mais profundas, conduzindo a uma última purificação intensa. Essa etapa final simboliza a confrontação com a traição pessoal mais profunda: a auto traição. O confronto e a remissão de auto traição são fundamentais para o renascimento espiritual e a emergência para a luz da consciência superior, culminando na experiência transcendental de unidade e entendimento que aguarda no final dessa iniciação.
Uma iniciação pela Arte Real
Com o término do rito iniciático, o neófito, transformado, vislumbra uma nova perspectiva de seu ser.
“Ao emergir da caverna, um alívio inundou-me, misturado à gratidão. A escuridão e os desafios durante a iniciação me fizeram confrontar minhas próprias sombras, revelando a resiliência da minha alma e a força para superar obstáculos antes impensáveis. Acompanhado por meu Mestre, que me guiava com sabedoria e firmeza, enfrentei minha própria natureza, oferecendo a mim mesmo em sacrifício, em um ato de renúncia e abnegação.
Ao sair da escuridão e encontrar o céu estrelado, o mundo transformou-se. Tudo parecia mais intenso, mais real, sob a luz cintilante das estrelas. Eu havia renascido, pronto para encarar a vida com uma compreensão profunda e renovada.
Essa vivência no Poço Iniciático se tornou um marco em minha jornada espiritual. E assim, tal qual Dante ao final de seu percurso infernal, eu também contemplava as estrelas, após uma intensa jornada de transformação e superação, pronto para compartilhar a sabedoria adquirida com aqueles que também buscam a verdade e a compreensão do universo e de si mesmos.”
relato de um iniciado – L.B.
Psicologia e a Arte Real
Em conclusão, a experiência simbólica e a jornada ritualística através do Poço Iniciático podem ter um impacto substancial na psicologia de um indivíduo. Através da lente da psicologia e da teoria Junguiana, podemos discernir os seguintes pontos chave:
- Autoconhecimento e Individuação: A jornada simbólica através dos “nove patamares” incentiva um profundo autoexame e introspecção. Isso leva a uma maior consciência das próprias fraquezas, desejos, medos e potenciais, proporcionando uma oportunidade para um autoconhecimento mais profundo e uma compreensão mais clara de seu próprio caráter e personalidade. Este autoconhecimento mais profundo é uma característica crucial para a individuação, conforme descrito por Carl Jung.
- Resiliência e Autoconfiança: Superar os desafios simbólicos e confrontar os aspectos sombrios do self ajuda a construir resiliência e autoconfiança. A experiência demonstra a própria capacidade de enfrentar e superar adversidades, o que pode fortalecer a confiança na própria capacidade de lidar com dificuldades futuras. Pesquisas em psicologia destacam a importância da resiliência para a saúde mental e o bem-estar geral.
- Metanoia: A jornada do neófito, da escuridão para a luz, é fundamentalmente uma história de transformação pessoal. Isso instiga uma mudança de perspectiva, talvez até mesmo uma mudança de valores e crenças, à medida que a pessoa emerge da experiência sentindo-se renovada e transformada. A transformação pessoal resultante é vista como uma forma de Metanoia, um termo Junguiano que se refere a uma mudança profunda e fundamental na personalidade de um indivíduo.
- Experiência Mística: A natureza simbólica e ritualística da experiência facilita uma conexão mais profunda com o espiritual ou o transcendental. Para alguns, isso leva a uma conexão mais profunda com uma divindade ou um princípio espiritual. Para outros, leva a uma conexão mais profunda com o próprio eu interior ou com o universo como um todo. A conexão espiritual experienciada é vista como uma experiência mística. O que William James argumentou ser crucial para a experiência religiosa. Proporcionando um sentido de propósito e significado profundos.
- Empatia: Ao experimentar a luta simbólica através dos nove patamares, se espera que o indivíduo desenvolva uma maior empatia e compreensão pelos desafios e lutas dos outros. Assim, levar a uma maior abertura para os outros e um desejo de ajudar e apoiar os outros em suas próprias jornadas. Ter uma maior empatia e compreensão pelos outros são características associadas à saúde mental positiva e ao bem-estar.
- Plasticidade Comportamental e Mudanças no Comportamento: As reflexões e realizações obtidas através dessa experiência levam a mudanças significativas no comportamento. Isso pode incluir uma maior autodisciplina, uma maior dedicação a práticas espirituais ou de autoaperfeiçoamento. Assim como uma mudança nos hábitos e rotinas diárias. As mudanças comportamentais decorrentes dessas experiências refletem o conceito de plasticidade comportamental, o fenômeno pelo qual o comportamento de um indivíduo muda em resposta a novas experiências ou informações.
Em síntese, as experiências simbólicas e rituais de iniciação podem fornecer insights valiosos para o desenvolvimento humano, espiritual e psicológico. A jornada do neófito pode servir como um poderoso catalisador para a transformação pessoal e o crescimento psicológico.
Comentários Finais
O aspecto mais cativante deste processo reside, sem dúvida, na participação ativa dos envolvidos. A troca de experiências e impressões, unida ao ambiente exclusivo de cura e aprendizado espiritual, leva à concretização tanto do conhecimento consciente quanto do inconsciente, transformando-se em consciência palpável.
A capacidade de um grupo em construir e executar o seu próprio ritual, dando vida à sua “Arte Real”, é uma experiência que transcende a mera descrição textual. É um fenômeno que só pode ser plenamente apreciado através da vivência direta e experimentação pessoal.
Uma ótima semana de estudos para vocês
Lauro Borges