O poder da imaginação nos impede de ver as coisas como elas realmente são. Por mais que se faça a auto-observação, a imaginação estará lá a todo momento. Estará em todas as nossas partes e atuando de uma maneira complexa. A imaginação permeia toda a nossa vida. Ainda mais na vida moderna onde “criatividade” é constantemente confundida com imaginação. A imaginação nos faz crer que estamos trabalhando, que estamos sendo sinceros e honestos. A mesma imaginação cria obstáculos onde não existem enquanto disfarça os verdadeiros problemas. Tudo isso nos mantém identificados e iludidos com nossa atual situação psicológica interior.
Imaginação, o filme que nos domina
Para tentar compreender como a imaginação atua em nossa psique, podemos observar que a percepção da realidade se manifesta em dois diferentes níveis. Dessa forma, produz ao mesmo tempo dois filmes (ou histórias) diferentes. Vamos chamar o primeiro filme de interpretativo. Essa percepção aparece quando estamos atento ao mundo exterior e tentamos adaptar-se às suas exigências e às suas modificações. Esse filme interpretativo parte das percepções necessariamente relativas que o mundo possui. Bem como das respostas relativamente apropriadas que são dadas. Com isso um filme interpretativo é construído mais ou menos copiado do mundo real.
O segundo filme é imaginativo e aparece assim que estamos atentos ao nosso mundo psíquico interior. É formado inteiramente a partir de materiais deste mundo psíquico. Materiais que são recebidos e originalmente registrados a partir de elementos da realidade. Contudo, acabam em formas mais ou menos distantes da realidade. Assim, este segundo filme perde sua correspondência direta com a realidade externa. Portanto, nenhum confronto com a realidade pode ter controle espontâneo sobre essa segunda história.
Dessa forma, esse segundo filme pode estar completamente desligado da realidade. Pode estar vagando por onde quiser. No entanto, esses dois filmes, o interpretativo e o imaginativo, estão sendo sobrepostos a percepções reais o tempo todo pela nossa atividade psíquica. Para deixar isso ainda mais complexo, ambos os filmes são incessantemente fabricados com percepções do momento presente que se misturam com antigos materiais. E dessa forma, ambos são gravados simultaneamente nas memórias dos centros. Portanto, a simples percepção, interpretação e imaginação estão sempre presentes em nós simultaneamente. Isso tudo acontece sem que saibamos.
Imaginação, útil para evolução é uma armadilha para cognição
Convivemos com os três tipos de visão juntos. Nada acontece em um dos três “filmes de realidade” (interpretativo, imaginativo e percepção) que não cause uma reverberação nos outros dois. Isso em si não deveria ser um problema a partir do momento que entendemos como funcionamos. A cognição humana está ligada ao desenvolvimento de nosso cérebro animal. O cérebro consome a grande parte de nossa energia. Ter um cérebro grande também tem suas desvantagens. Por isso, o cérebro mecânico trabalha com suas memórias e interpretações associativas. Assim, temos acesso a uma vasta gama de respostas automáticas, a um custo de processamento de dados baixíssimo. Acontece que muitos dados nos chegam incompletos ou se perdem nesse processo de fusão cognitiva. Em outras palabras, podemos atravessar uma rua sem precisar de muitas instruções ou elaborações sobre isso. No entanto, dificilmente evitamos entrar em conflitos apaixonados.
O que mais importa disso tudo é o sentido e o propósito que damos a esses filmes. Se fossemos capazes de ver a realidade diretamente, poderíamos responder a ela de maneira plena e harmoniosa. Assim, nossas vidas fluiriam sem sobressaltos com a satisfação de uma tarefa plenamente assumida. Com isso poderíamos constantemente ver as coisas como elas são. Contudo, teríamos um senso constante da relatividade de tudo. Logo, esses filmes não teriam nenhuma utilidade.
Mas a realidade é que somos incompletos em nosso desenvolvimento. Somos incapazes de enfrentar as realidades da vida. Podemos somente responder a realidade apenas de forma parcial ou confusa. Porém, estar presente nessa realidade é viver em constante discórdia, ansiedade e remorso por não ser o que deveria ser. Por não conseguir fazer o que é necessário. Dessa forma, o poder imaginativo ao cunhar esse filme duplo cria também suas justificativas por ser o que é. Em contrapartida, deixamos de notar todas as nossas deficiências ou passamos a considerá-las “normais” para não mais sofre em relação a elas.
A difícil arte de perceber nossa imaginação
Ao mesmo tempo, não há mais chances de escapar desse jogo por si mesmo uma vez dentro desse jogo da imaginação. A capacidade de atenção é fraca por natureza. Geralmente não lhe permite manter mais de uma coisa ao mesmo tempo em seu campo de visão. Assim, a atenção vai comutando entre as percepções da realidade, o fluxo de interpretações e as construções da imaginação. A atenção muda continuamente de um para outro, geralmente sem que se tenha observado a mudança. Observar sua situação se torna impossível, pois, nunca sabe claramente em qual dos três campos se está.
A percepção real, interpretativa e imaginativa é constantemente confundida. As interpretações são substituídas ou identificadas, fazendo o uso de um ou de outro indiscriminadamente de acordo com o que lhe parece mais oportuno. Não obstante, o filme imaginativo parece ter uma certa facilidade de ser percebido. Mesmo que isso seja feito de forma inconsciente. É como se por vezes percebêssemos que estamos escolhendo voluntariamente acreditar em uma imaginação para não ter de enfrentar as duras realidades dos fatos. Isso me faz lembrar da clássica cena do bife no filme Matrix onde o rebelde resolve se entregar para o sistema em troca da ilusão de saborear um bife (veja abaixo). Ele termina a cena dizendo “a ignorância é uma benção”. Porém, no nosso caso viver dentro da imaginação é viver dentro da ignorância. Afinal, esse filme da imaginação ignora totalmente a realidade exterior que se apresenta.
Matrix – Cypher (Cena do bife)
Cada pessoa possui seu viés
A estrutura interna das pessoas é diferente por essência. Assim, cada um possui uma tendência a favorecer a própria percepção real ou a de um ou outro dos filmes. Também vale salientar que a rememoração dos fatos ocorridos poderá acontecer em diferentes filmes dependendo da situação no momento. Assim, um momento vivido mais no interpretativo pode ser rememorado no imaginativo. Isso toca em toda a constituição psicossomática e na relação especial em cada pessoa entre seus dois aspectos.
Todavia, sua vida se equilibra de diferentes maneiras à medida que se preferir as percepções reais em detrimento do filme interpretativo ou o imaginativo. Porém, se uma pessoa favorece ao extremo de um ou outro, entrará no “mundo” do positivismo, da neurose ou da psicose. A última tendência resulta de quando a imaginação é levada ao limite. Quando o filme imaginativo se fixa em um assunto mais ou menos estreito e isolado de qualquer contato com a realidade. Logo, o filme imaginativo torna-se obsessão, delírio ou loucura. Em todo caso, na medida em que um desses filmes se torna exclusivo, acabamos por nos tornar mais uma vez vítima de nossa imaginação. Portanto, o único modo de não tornar a imaginação todo-poderosa é pela introdução de um quarto modo, o modo equilibrado entre essas três realidades. Essa é a melhor base para “trabalhar sobre si mesmo”.
A imaginação é parte de nossa natureza
Por natureza e pelo próprio fato de sua existência, o ser humano não pode deixar de ter percepções, interpretações e imaginários. Talvez as possibilidades inerentes a tal combinação sejam mesmo uma das razões mais profundas da existência do ser humano. Porém sua existência natural é totalmente distorcida e desequilibrada. A cognição humana baseia-se quase inteiramente em dados “subjetivos” e perdem toda a objetividade real. Nosso cérebro não foi feito para funcionar de forma automática muito além da complexidade de um animal. Se queremos ser algo além disso, se não quer morrer com um cão, algo deve ser feito por você.
Além disso, a ênfase dada aos filmes interpretativos ou imaginativos é fruto da formatação da educação e cultura. De regras, normas, padrões e subjetividades inconscientes e coletivas de toda a sociedade moderna. Soma a isso o viés de cada indivíduo de reagir preferencialmente de acordo com seu aspecto psíquico ou somático. Isso tudo domina suas manifestações habituais e faz parte do animal natural. Isso é o funcionamento automático de quase todas as máquinas humanas. Em suma, a lógica e aderência a verdade objetiva morre na página dois do livro.
Todos esses modos de funcionamento são inúteis e geralmente prejudiciais. Não passam de uma cobertura artificial desenvolvida sob a pressão da imaginação. A única coisa útil para o homem é a percepção exata das impressões e a verdadeira “visão” das coisas como elas são. A afirmação normal de si, resultante dessas duas faculdades, não poderia ser a reação imaginada que se encontra afastada da realidade. Não deveria dignificar uma resposta imaginada e mutável. Uma pessoa deveria se ater exatamente aos fatos e às leis que regem sua evolução.
A Terra é plana, pelo menos na imaginação
Vamos a um exemplo prático desses mecanismos de percepção da realidade. Vejamos a questão se a Terra é plana ou não. Para isso precisamos voltar no tempo e compreender as realidades perceptivas, interpretativas e imaginativas a 5000 anos atrás. A realidade perceptiva não se altera com o tempo. No entanto, essa realidade se amplia com o desenvolvimento humano. Assim, não inventamos muitas coisas, porém, estamos sempre a descobrir. Ou seja, a retirar os véus que cobrem a realidade. Continuamos a ver a Sol nascer e a se por. Assim como vemos as estrelas surgirem na abóboda celeste. Porém, o que aconteceu ao longo do tempo foi perceber outras coisas. Eratóstenes através da realidade perceptiva notou a mais de 2000 anos atrás que o Sol fazia sombra de forma diferente à medida que se deslocava para os polos da Terra. Assim, ele pode medir o ângulo que o sol fazia em um poste a uma certa distância de um poço em que o sol não fazia sombra.
Tudo isso exigiu de Erastóstenes muita inventividade para conseguir determinar a distância entre o poste e o poço e o exato momento em que esses eventos ocorriam. Não existia nem relógios para ele sincronizar os eventos. Assim como não existia GPS para ele medir as distâncias entre o poste e o poço. Com essas medidas ele pode usar correlações trigonométricas para obter o valor de 39250 km de circunferência. O impressionante desse feito é que medições modernas mostraram um erro de apenas 320km.
Este é um bom exemplo de como a realidade perceptiva se funde a realidade interpretativa dentro de uma verdade objetiva. Há pouca imaginação falaciosa nesse feito e muita criatividade. Porém, vamos voltar para o modelo da Terra plana. A percepção vigente naquela época era que Deus criou todo o universo e o ser humano é sua imagem e semelhança. Logo, existia a dominância do antropocentrismo, ou seja, o homem no centro do universo. Assim, não se percebia a grandeza do universo. Nesse modelo há então a predominância do filme imaginativo em detrimentos do filme perceptivo e interpretativo. Em outras palavras, a dominância da cultura e crenças religiosas reforçavam o filme imaginativo. Dessa forma, a imaginação capturava o filme interpretativo e ignorava ou justificava qualquer fato percebido que negasse esse modelo.
Com o desenvolvimento tecnológico das lentes de vidro, tornou-se possível a fabricação de telescópios. Esses equipamentos permitiram observar a gigantesca grandeza do universo. E outro choque de percepção foi possível quando o telescópio Hubble foi posto em órbita na nossa era recente. Com ele podemos hoje observar um universo com um número incontável de galaxias e impensável de planetas. Dessa forma, podemos dizer que a imaginação é útil quando complementa lacunas da realidade interpretativa em busca da compreensão da realidade objetiva. Se estamos presentes e atentos, somos capazes de perceber nossos erros de interpretação e corrigir nossos modelos cognitivos na medida que surgem novas percepções.
Imaginação é um hábito perverso
Nenhuma resposta requer “imaginação”, não essa imaginação falaciosa em que se perdem as pessoas. As pessoas deveriam se ater a uma representação objetiva, resultante da interpretação exata do que é visto. Uma previsão em conformidade com o conhecimento real. E isso leva a muitas vezes a perceber que verdadeiramente não sabemos muitas das respostas que antes julgávamos saber. Mas estamos numa sociedade em que não saber dar uma opinião sobre algo é sinal de fraqueza, ignorância e “idiotice”. Logo, hoje todos somos especialistas em absolutamente tudo. Cheios de opiniões sobre os mais diversos assuntos. De vacinas, política, futebol, artes, mercado financeiro, astrofísica e claro, tudo quanto assunto sobre espiritualidade.
Soma-se ao fato que a verdade nua e crua é ser mais fácil imaginar a própria vida do que transformá-la. Por outro lado, uma pessoa deveria inicialmente ser dotada de conhecimento. Deveria de fato prever e organizar sua vida. Mas a realidade é que naturalmente não temos os meios para fazer isso. Assim, somente cabe a pessoa comum atribuir imediatamente a si mesmo essas e muitas outras qualidades de forma imaginária. Logo, a imaginação em todas as suas formas se torna um dos piores inimigos da pessoa e um dos principais obstáculos ao seu despertar e à sua evolução.
Na realidade, além da aparência externa, não há nada permanente. Tudo muda sem cessar. Não há um único centro controlador nem um eu permanente. Assim, o personagem que representa o homem na vida nada mais é do que uma construção artificial. Mais uma vez é bom lembrar que tudo isso é muito útil para a vida. São mecanismos vencedores do ponto de vista evolutivo. Além disso, funcionam relativamente de forma sadia dentro do coletivo. No entanto, é a falta de participação voluntária o grande gerador de desiquilíbrios. A grande maioria das pessoas não precisam de remédios psiquiátricos. Também é nisso que reside as grandes injustiças sociais. A solução para muitos desses problemas passa por aprender a regular nossas próprias máquinas. Mas para tanto, precisam antes entender como elas funcionam. Um bom terapeuta pode lhe ajudar. No entanto, nunca será capaz de resolver isso. Esse entendimento só é possível de dentro para fora. E o único que pode acessá-lo é você.
Ainda vou continuar a explorar os obstáculos do despertar no próximo artigo. Na semana que vem falaremos sobre os amortecedores. Uma ótima semana de estudos a todos.
Lauro Borges
Esse artigo faz parte de uma série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.
Eu fiquei confusa com a diferença entre a forma imaginativa e a interpretativa, já que a interpretativa não correspondem com a realidade e dessa forma, é inventada que acredito ser sinônimo de imaginada, e então queria saber a diferença com mais detalhes. Se não tiver a imaginação (que deve sofrer influência do meio e outras mais, como não chegar a alguma interpretação?