Um dos melhores conceitos que aprendi com os ensinamentos de Gurdjieff é sobre o conceito dos alimentos e os corpos. Cada um de nossos três corpos necessitam de um tipo diferente de alimento. O corpo físico do alimento físico, ou seja, comida e líquidos. Enquanto o segundo alimento é o ar. Não é o simples oxigênio e nitrogênio que respiramos. É também o conceito do prana. O último alimento são as impressões.
Por várias vezes discorri sobre esse tema. Você pode ver mais detalhes aqui e aqui também. No entanto, sempre há algo novo em descobrir. Principalmente sobre o complexo entendimento do que são as impressões e o que vem a ser sua digestão. Ainda mais, o que acontece com essa digestão? O que é digerido e qual o produto dessa digestão? Fato é que todo trabalho psicológico consiste em realizar esse trabalho. Principalmente o trabalho relativo a digestão das impressões.
Em minha experiência, nunca consegui observar com precisão absoluta onde tal digestão de impressões acontece. É dito que esse é o último exercício transmitido por Gurdjieff. Em sua trilogia de “All and everything”, no seu último capítulo, é apresentado um exercício incompleto. Por vezes, surfando na internet e trocando mensagem com grupos de estudos, encontro esse exercício transcrito de maneira completa. Muitos alegam serem esses escritos legítimos, ou seja, vindos do próprio Gurdjieff.
O exercício completo é realizado em três ciclos. O primeiro ciclo acontece concentrando a energia oriunda do ar. A segunda parte consiste em dar o choque entre a primeira energia acumulada e as impressões. O último passo consiste em depositar essa energia no próprio corpo para com isso construir um quarto corpo. Em outras palavras, essa energia mais sutil deve ser usada para construir a própria alma. Irei compartilhar esse exercício posteriormente.
Em minha opinião, realizar esse exercício não é suficiente para compreender o que são as impressões. Por muitas vezes, as pessoas estão tão identificadas que não conseguem distinguir-se das próprias impressões. Tais impressões acumulam nesta pessoa a ponto de ela se se ver como o resultado disso. Porém, para digerir as impressões temos que constantemente lembrar de si. Dessa forma, pelo menos uma vez, perceber que há algo além do ser que recebe as impressões. Logo, é necessário enxergar (perceber), nem que por um segundo, que há algo que não se identifica com tudo isso. Algo que não se identifica com as impressões. Afinal, se isso não existir, quem receberá a digestão das impressões?
Devemos lembrar principalmente que digerir algo é realizar um conjunto de processos implicados na conversão de alimentos em substâncias adequadas à absorção e à assimilação. Portanto, o que se digere deve ser quebrado em seus componentes em moléculas menores, passíveis de absorção e posterior utilização pelo organismo. Assim, digerir é transformar algo em um processo de destruição para poder utilizá-lo como um material de construção posteriormente em um novo ciclo.
Refletindo sobre isso, tive a seguinte imagem: toda essa questão da identificação exterior assemelha-se com uma pessoa que se alimenta de frutas, legumes e proteínas. E essa pessoa se vê como estes próprios elementos. Ao contrário de se ver como o ser que digeriu e alimentou-se desses alimentos para construir o seu próprio ser. O nosso corpo físico digere os alimentos e os transforma em outros componentes. E são esses componentes que interessam. Não são as formas físicas exteriores do que alimentamos. As impressões também possuem formas físicas exteriores. Elas nos chegam por sensações e percepções. Sem um corpo físico e sem uma excitação física não há impressões. Há também outras impressões mais sutis que nos chegam. Dessas impressões falarei mais tarde.
Essa reflexão me fez lembrar de uma imagem que vi de um pintor que compõe rostos humanos utilizando elementos exteriores. Quando vemos de longe, não percebemos os elementos que compõem o quadro. Ao mesmo tempo, se olhamos muito de perto, não vemos a composição. Encontrei o tal pintor e suas obras. O nome dele é Giuseppe Arcimboldo. A memória de suas obras encaixou perfeitamente em minha tentativa de perceber como nos identificamos como retalhos de impressões exteriores, enquanto há um mundo interior inexistente.
Não quero com isso dizer que o mundo exterior é desnecessário. Ao contrário, esse mundo é o alimento que precisamos receber e digerir. Porém, não podemos é deixar confundir o mundo e as impressões que nos rodeiam com o que você é interiormente. Quando percebemos essa diferença, podemos então realizar a digestão de nossas impressões. Assim, os “elementos” que são gerados por essa digestão poderão ser usados na construção de um outro corpo. Esse é o corpo interior que Gurdjieff chama também de corpo moral. É desse corpo que emana os nossos valores e princípios. Também é esse corpo que nos aproxima ou nos afasta da presença Divina.
Gurdjieff encerra sua trilogia “All and Everything” em seu livro “Life is real when I am” literalmente dessa forma inacabada.
“No homem, os três tipos de vibrações têm sua origem nos três processos seguintes: O primeiro tipo de vibrações tem sua origem no processo chamado “pensamento ativo” e às vezes até, graças a certas combinações conhecidas, no processo de “pensamento passivo”. O segundo tipo de vibrações tem sua origem no processo chamado “sentimento”. O terceiro tipo de vibrações corresponde à totalidade dos resultados provenientes do funcionamento de todos os órgãos do corpo físico – também são chamados de “vibrações das funções instintivas”.
As vibrações emitidas pela presença total de um homem em estado de completo relaxamento constituem em si mesmas uma atmosfera análoga ao espectro de cores, tendo um limite conhecido para sua expansão.
E assim que um homem começa a pensar, sentir ou se mover, essa atmosfera espectral muda, tanto no volume de sua expansão quanto na qualidade de sua presença.
Quanto maior a intensidade da manifestação de uma ou outra das funções separadas da psique geral de um homem, mais o espectro de sua atmosfera é diferenciado.
Podemos muito bem representar para nós mesmos a combinação de vibrações heterogêneas que surgem na radiação geral de diferentes pessoas no curso de sua existência ordinária, se compararmos com a seguinte imagem: Em uma noite escura, durante uma violenta tempestade sobre o oceano, alguns as pessoas em terra observam as oscilações de uma coleção flutuante de muitas lâmpadas elétricas coloridas, conectadas entre si em longos intervalos e nas extremidades com dois fios.
Embora essas lâmpadas coloridas extraiam sua corrente de uma única e mesma fonte, ainda assim, como seus raios passam por condições mutáveis de vários tipos, algumas brilham à distância, outras afetam umas às outras à medida que se interpenetram, outras ainda são completamente absorvidas no meio da luz ou no próprio local de seu surgimento.
Se duas pessoas estão juntas, quanto mais próximas uma da outra, mais íntima é a mistura de suas atmosferas e, portanto, melhor é o contato alcançado entre suas vibrações específicas.
A mescla e a fusão das vibrações específicas emitidas por diferentes pessoas ocorrem mecanicamente, dependendo de sua situação em relação ao outro e das condições em que se encontram.
E assim, entre as pessoas com quem tenho contato, a formação de os fatores psíquicos necessários para a manifestação de atitudes diametralmente opostas a mim devem ocorrer inevitavelmente da seguinte maneira.”
Infelizmente, Gurdjieff não termina sua explicação. Todavia, aqui há tudo que precisamos entender sobre qualquer processo terapêutico. Por muitas vezes as pessoas buscam terapias para poder “se livrar” dessas cargas que se depositam em si. Isso ocorre porque não nos é ensinado a digerir todo esse conteúdo que recebemos pela vida. Assim, as pessoas tentam simplesmente “se livrar” das impressões recebidas ou tentam negar que essas impressões estão coladas nele/nela. O conceito que é necessário digerir tais impressões é algo tão abstrato. É necessário compreender que há algo além das impressões que nos moldam. Caso contrário, a pessoa continuará a achar que ela é esse conjunto disforme de impressões. E quem aqui em sã consciência comeria um membro de seu próprio corpo. Afinal, quando estamos identificados, não diferenciamos o “eu” do que é alimento. Na semana que vem continuamos essa conversa de canibal.
Uma ótima semana de estudos a todos vocês.
Imagem de Napoleão por Arcimboldo.
Muito bom o texto, gostaria de conversarmos sobre digestão e impressões em nossa próxima reunião.