O ponto perfeito

É possível ser perfeito? Muitas tradições espirituais irão dizer que esse é o maior objetivo de um ser humano. Mas o que é ser perfeito? É, antes de mais nada, ser ausente de erros. Portanto, há algo sim na alma do ser humano que pode mostrar o que lhe é perfeito. Este é o tema do Ponto 1 do Eneagrama e também o fim de nossa jornada pelo raio da criação.

O que é ser perfeito?

Você já notou que algo perfeito é muito difícil de ser definido por suas qualidades? No entanto, é muito mais fácil definir pela ausência de defeitos, erros, nódoa, vícios, etc. Logo , é mais fácil conceituar o que se aproxima da perfeição por tudo aquilo que lhe sobra e pode ser retirado ou por aquilo que lhe falta e lhe deve ser corrigido.

Da mesma forma, perfeição será percebida pelo julgamento de quem observa em um determinado momento. Portanto, algo notado como perfeito pode ser avaliado como imperfeito para uma diferente ocasião ou momento. Assim, o que é perfeito deixa de ser perfeito quando as circunstâncias são outras. Então, há uma efemeridade e um julgamento estético associado a perfeição. Contudo, do ponto de vista moral, o que é perfeito também pode evoluir para algo ainda melhor na medida que nossa compreensão do mundo também evolui.

Podemos definir o perfeito?

Mas parece que a única coisa imutável em todo conceito de perfeição é o amor Divino. Um sentimento que não pode ser explicado. Porém, pode ser vivido e sentido. A expressão de tal amor Divino vem do centro emocional superior e é direcionado pelo centro mental superior. Dessa forma,  se torna a própria razão objetiva. A mais pura lógica racional.

Quando a razão objetiva encontra a emoção superior ela age como um raio. É esse raio que liga o todo superior ao todo inferior. Uma sensação que transpassa o indivíduo e o faz sentir-se único. Ou seja, uno com o seu todo. Ser uno é ser “1” antes de tudo. É ser você mesmo como indivíduo. Um ser individualizado que, ao mesmo tempo, não se divide entre o todo. Porém, não deixa de ser parte integral desse todo. Portanto, não existe nesse momento  o conceito de dualidade. Dessa forma, o momento presente se torna um momento perfeito. Não há mais nada a ser feito. Nada mais a ser adicionado ou subtraído. Tudo está pronto.

O Grilo Falante de Pinóquio, um exemplo da voz da consciência moral

Essa sensação pode ser sentida por qualquer pessoa. Uma  sensação de transbordamento e completude. Seja por uma simples admiração a beleza da natureza ou no olhar de uma criança. Mas logo somos acometidos por milhares de sensações, desejos, pensamentos e emoções. Ainda mais, julgamentos e avaliações de mérito rapidamente nos retiram de tal estado.

O quê se encontra perfeito?

Mas afinal, você já parou para observar quem estava naquele estado de perfeição? O que se encontrava ali perfeito?

Talvez você observe que o Perfeito é ao mesmo tempo completo e o próprio vazio. Mas não o vazio do coração. Muito menos a ausência de sentidos, emoções e pensamentos. Afinal, pensamentos estarão sempre presentes. Todos carregamos vozes em nossas cabeças. Porém, o estado perfeito é aquele em que não estamos mais associados a tudo isso. Contudo, também não é estar desassociados, ou melhor, desencarnados da experiência. Afinal, isso implicaria em se dividir em um estado não associado e outro associado. Portanto, este é um estado de não associação. De quem observa a si e se compreende perfeitamente.

O raio que cai

Como dito, o efeito da compreensão da razão objetiva chega como um raio. Uma “ficha que cai”. É como um relâmpago que despeja sua força do “céu” a “terra”. Todas as culturas primitivas possuíam deuses do trovão. Tais deuses eram os mais poderosos entre todos. Da mesma forma que a nossa consciência, quando se apresenta, traz internamente a voz do trovão. É impossível não se abalar, nem que por alguns segundos, quando sentimos esse “raio da consciência” bater sobre a nossa própria moral.

Quando isso ocorre, não há nada que impeça de “ouvir a voz interior”. E essa voz traz junto consigo algo muito maior que um julgamento do bem contra o mau. É algo ainda maior que o certo e o errado. Ainda mais, está além de um receio de sofrer uma punição divina ou cósmica. Essa voz traz uma vontade natural e instintiva do devir. Assim, o devir é o sentido da própria alma de “vir a ser”. O que não pode ser confundido com o dever  que é o ato de sentir-se obrigado a realizar algo pela força moral ou da própria lei.

Um raio que cai

O dever e o devir

Dessa forma, a falsa personalidade que se cristaliza no Ponto 1 do Eneagrama traz consigo um agudo senso de dever que substitui o seu senso natural de devir. Para a falsa personalidade, o sentido natural e instintivo de progresso se confunde com uma obrigação moral e um sentimento de dívida. Contudo, a verdadeira personalidade cristalizada no Ponto 1 compreende a dualidade do impulso moral do dever sem perder o próprio impulso indeterminado do devir. De outra forma, o dever cristaliza algo em torno de uma perfeição estática enquanto o devir reconhece um desdobrar infinito de “tornar-se” algo.

Portanto, o que será perfeito é o próprio ato e não o ser. Pois o ser que é perfeito não mais tem função na ação do contínuo transformar do universo. Assim, o universo é algo indeterminado, que sempre está se desdobrando e recriando. Um pedaço de carvão é tão perfeito quanto um diamante em uma determinada perspectiva. Não quero dizer que devemos ignorar o que é certo e errado. Portanto, haverá a perspectiva da vida orgânica e a perspectiva cósmica.

Viver em estado perfeito em um mundo imperfeito

Muitos passam suas vidas enterrados na perspectiva da vida orgânica sem nunca conseguir perceber a escala cósmica. Outros podem eventualmente perceber a escala cósmica e assim achar que podem viver por ela se desassociando da vida orgânica. Porém, o verdadeiro ser humano está em total equilíbrio entre essas duas realidades. Assim, cabe o próprio ser humano atuar como o elemento transformador que faz comunicar a vida orgânica com a escala cósmica.

A falsa personalidade do Ponto 1 tem a tendência de enxergar a incompletude de tudo que lhe rodeia. Portanto, tudo se torna um sacrifício moral de corrigir o mundo ao seu redor.  Essa necessidade de atuar rumo a uma perfeição estática vem da falsa personalidade que busca assim criar o seu falso devir pelo cumprimento moral do dever. Contudo, o próprio devir requer que algo seja mudado. Porém se algo é perfeito, não pode mais ser mudado sem que lhe torne imperfeito. A não ser que compreendemos que só poderá ser perfeito pela própria efemeridade do momento.

Afaste-se do imperfeito

Portanto, o que cabe a nós corrigir é tudo aquilo que afasta do próprio amor Divino. Porém, o que requer correção e transformação é a própria falsa personalidade. Tudo aquilo que não pertence a própria alma e representa a cultura, educação e imposições exteriores. Quando avançamos em um longo trabalho de auto observação e conhecimento interior, vamos deparar com uma série de incoerências e dificuldades morais. Muitas dessas podem ser até intransponíveis. No entanto, devemos lembrar que nosso próprio conceito e entendimento sobre a realidade é muito limitado. Definitivamente estamos em uma evolução biológica. Tornar-se um santo é algo que exige muito tempo, disposição, vontade. Além disso, ainda depende de receber externamente ajudas e influências que te coloque no caminho certo.

Logo, a perfeição não é uma obra que iremos ver terminada. Todavia, podemos seguir o próprio impulso instintivo da alma de transformação. Um impulso que busca identificar o que lhe é falho e atuar para um movimento de perfeição. Assim, um momento consciente que se impeça um ato de nossas falsas personalidades tem a força de trazer a possibilidade do novo. Ou seja, a possibilidade do devir.

Os nove estados de perfeição

Todos os nove tipos de personalidades cristalizados no Eneagrama estão simplesmente agindo pela melhor maneira de suas próprias naturezas. Também, apresentam conjuntamente a lembrança de que vivemos em um universo dinâmico e em constante transformação. A personalidade cristalizada é a matéria que permite a própria alma se desenvolver a parti do momento que “se veja a si mesmo “, sem rejeição, medo, raiva e tristeza. Isso permite compreender o que está falso em si. O que afasta da sensação de unidade entre os cinco centros inferiores e os dois centros superiores. Portanto, quando estamos prontos o raio cairá. O trovão será ouvido e definitivamente a verdadeira lembrança de si chegará trazendo a plena sensação de integridade de seu ser.

 Para transformar temos de começar com algo. Estabelecer um ponto de partida. Assim, este ponto nos permite começar a agir. Caso contrário, ficamos preso no dilema moral da ação certa a fazer. Portanto, a ação certa inicial é a pura ação. Todavia, para compreender o que devemos transformar e o que devemos reter, se faz necessidade de todo o desdobramento da Lei de Sete. O funcionamento deste desdobramento está descrito nos 8 artigos anteriores sobre o Eneagrama.

Sua alma reflete teu corpo moral

Contudo, se a alma humana não tivesse um arcabouço moral , essa iria sempre transformar o ato de devir como algo randomizado. Ou seja, a transformação seria aleatória e a próxima ação pode ser sempre boa ou má. Logo, não há progresso moral já que o devir é um ato livre de “vir a ser”. Porém, outra maneira de enxergar é que o devir age sob as bases morais. Portanto, o vir a ser é algo que busca se livrar do erro. Ou seja, é um ato que busca a perfeição. Contudo, este é o ato que exige a consciência e a participação do próprio ser.

Kant, o filósofo do Ponto 1 do Eneagrama

E por isso que o progresso moral acontece de forma tão lenta. Afinal, participar do próprio progresso moral voluntariamente exige muita atenção, esforço e vontade. Ao contrário, a grande maioria vive sendo guiada pelo mundo e não pela própria consciência. Assim, a evolução coletiva sempre será mais lenta que daqueles que se esforçam a se desenvolver individualmente.

Para finalizar, nunca devemos perder a perspectiva da compaixão. É este sentimento que permite aceitar o mundo que vivemos e ao mesmo tempo trabalhar para o seu progresso. O Eneagrama é uma jornada circular. Dessa forma, sempre voltamos ao ponto de partida. Saímos do Ponto 9 e demos uma longa volta até o Ponto 1. Tudo isso para ao fim retornar ao próprio Ponto 9. Um retorno que torna cada vez mais consciente de si e da ação das próprias leis da transformação.

Para estudar mais  

Pinóquio >>> Quem não lembra do “grilo falante”? Aquela vozinha moral que vive dizendo ao menino de pau para seguir as regras, obedecer a seu papai e se esforçar em seus estudos? Pois o grilo é uma das melhores representações do Ponto 1 do Eneagrama

Immanuel Kant >>>  Kant é um grande representante da filosofia do Ponto 1 do Eneagrama. Sua perfeição em construir toda a argumentação em mínimos detalhes reflete a necessidade de se buscar a perfeição dos argumentos. O seu conceito de imperativo categórico reflete a necessidade moral da alma humana. Também vale refletir a saída do homem de sua “menoridade” pelo uso de sua própria razão.

O imperativo categórico é enunciado com três diferentes fórmulas (e suas variantes). São elas:

  • Lei Universal: “Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.” Variante: “Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza.”
  • Fim em si mesmo: “Aja de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio.”
  • Legislador Universal (ou da Autonomia): “Aja de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas.” Variante: “Age como se fosses, através de suas máximas, sempre um membro legislador no reino universal dos fins.”

Martinho Lutero >>> Se você duvida do poder dos raios, saiba que Martinho tornou-se monge após um raio cair aos seus pés. Martinho é um bom exemplo de alguém que não acreditava na infalibilidade dos representantes da igreja católica. Também acreditava que a remissão do pecado só é possível pela reforma interior, nunca pela compra de indulgências. Seus próprios defeitos como a acusação de antissemitismo que paira sobre seus atos é a prova disso.

Uma ótima semana de estudos para vocês,

Lauro Borges

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