Quando entendemos nossa localização na escala cósmica, logo virá a pergunta: o que nos espera além da vida orgânica? A força da vida busca uma evolução constante. O ser humano possui uma psique que vai além das funções básicas necessárias para sobrevivência. Contudo, este é o legado da cultura humana. Com todas suas qualidades e seus defeitos. Afinal, é o patrimônio que nos distingue dos demais animais. Cada indivíduo contribui com essa construção ao seu modo e dentro de seu tempo. Porém, se a vida orgânica sobrevive a morte pela ação de copiar e colar, pode o indivíduo sobrevier também a morte?
Além da vida e da morte
A grande verdade está além da compreensão científica atual. Mas isso não impede que possamos especular sobre o assunto. Uma das maneiras de fazer isso de forma científica é usar as mesmas técnicas de investigação, lógica e razão para especular sobre o assunto. Por exemplo, se compreendemos que todo o universo está sujeito a leis, será que esse corpo psíquico também possui suas leis? Para Gurdjieff, devemos tratar todo assunto esotérico como material. Isso é, para ele tudo era material. A alma, o conhecimento, tudo é matéria feita de substâncias. Talvez seja matéria composta de mesmos elementos do universo, porém, com diferentes ordenações.
O fato é que não podemos negar diversos relatos, experimentos, experiências e vivências sobre o “sobrenatural”. Especialmente, tais experiências só são sobrenaturais se partimos do entendimento que há algo além do natural e da ordem material. Todavia, pelo entendimento que tudo é material e faz parte da mesma natureza, não há nada sobrenatural. Ou seja, tudo é natural. Entretanto, isso não significa que tenhamos compreensão suficiente sobre todos esses fenômenos. Porém, vamos assumir a hipótese: o mesmo ser humano que faz teses e teorias científicas também experimenta o dito “sobrenatural”. Esse mesmo ser diz que a Terra é redonda, que o DNA que criou toda a evolução da vida orgânica, que o universo é formado por partículas subatômicas que hora são energia e hora matéria. Pior ainda, que o universo é comporto por boa parte de matéria escura e que ela se desloca mais rápido que a luz. E pouco sabemos sobre essa tal de matéria escura.
Esse ser humano utiliza as mesmas capacidades facultativas e cognitivas para inferir hipóteses sobre o que não se pode ver. Em um momento, todas as teses científicas eram hipóteses com diversas explicações plausíveis. Assim, esse mesmo ser também percebe e relata a milênios sobre algo como uma vida além da morte. Relata sobre uma possibilidade de transformação e a continuidade de uma escala evolutiva. Simplesmente dizer que tais relatos são absurdos, crendices e ignorância é temer o fato que ainda pouco sabemos sobre a vida e o universo.
A vida e a morte talvez não exista
Aceitar essa hipótese não significa que exista um “céu” como relatado na bíblia. Muito menos um “deus” de barba branca. Na verdade, essa discussão se torna irrelevante a partir do momento que simplesmente acreditamos nessa possibilidade. Porém, chegar a este lugar (lugar no sentido de estado ou construção psicológica) exige algo a ser feito além da ação mecânica da vida orgânica. E como já foi dito no texto anterior, o desenvolvimento desse corpo é feito dentro de um coletivo. A evolução desse coletivo é dentro de seu próprio tempo. Se alguém quer estar a frente, deve então estar disposto a fazer mais para isso.
Como todo universo, somos máquinas de transformação. Dessa forma, um corpo existe para alimentar outro corpo de maneira sucessiva. O corpo físico é o corpo biológico. Esse pertence a vida orgânica. Sua existência é limitada enquanto conseguir se manter. Ao deixar de existir a vida nesse corpo, ele irá retornar a própria vida orgânica da Terra. A palavra humano vem de humus, terra, composto orgânico. Pois, esse corpo não é nada além disso. Do pó veio e ao pó retorna.
A evolução no corpo físico é bastante lenta. Apesar disso, vivemos uma era onde vacinas, antibióticos e alimentação permitiu uma extensão considerável na longevidade desse corpo. Porém, passarão milhares de anos até a aparição de uma nova espécie humana como no surgimento dos homines sapiens. Isso pode nem vir acontecer. Entretanto, a evolução do segundo corpo poderá acelerar todo esse processo natural. O ser humano já vem interferindo ativamente em seu próprio corpo. Assim, uma espécie com mais inteligência (cognição), maior longevidade e força poderá surgir. Isso não é necessariamente bom. Contudo, a natureza não se importa muito com esse conceito.
O corpo coletivo de sua personalidade
O segundo corpo é o corpo psíquico coletivo. Esse corpo faz parte da cultura coletiva da humanidade. Nele se retem todo o conhecimento humano como a fala, escrita, tradições, música, religiões, ciência, filosofia, artes, entre outros. Recebemos parte desse corpo como herança genética. Todavia, a grande carga vem mesmo da educação que recebemos da família e o meio que crescemos. Esse corpo externo molda o crescimento da nossa personalidade. É o que compõe a falsa personalidade nos termos de Gurdjieff. Lembrando que, para ele, a personalidade deveria ser a externalização da essência. Não uma manifestação involuntária e mecânica da cultura exterior. Esse corpo sofre constantes revoluções e algumas evoluções.
As revoluções são frutos de choques constantes inerentes da natureza humana. Gurdjieff ainda adicionava o fato de que recebemos influências de outros planetas. Tais influências fazem com que determinados momentos temos mais ou menos conflitos. Essa tese é de difícil comprovação. Contudo, conflitos são inerentes da ignorância humana. Fazem parte do seu legado animal que disputa por poder, status social, busca por privilégios e defende o interesse de seu próprio grupo. Apesar de todos os problemas gigantescos que temos no mundo, definitivamente estamos em uma fase de maior consciência quando comparado com o passado. Para se ter uma ideia, atualmente acidentes de automóveis e transportes matam muito mais que guerras.
Infelizmente, essa evolução sofre revezes. A primeira e segunda guerra aconteceu justamente quando se achava que a humanidade tinha atingido o ápice da razão. No entanto, vemos hoje que as barbáries humanas chegam e atingem a todos pela crescente conexão virtual. Violações aos direitos humanos não são mais problemas locais. Tornaram um problema global. Entretanto, devemos lembrar que se carregamos em nossa cultura toda essa ignorância, também carregamos o potencial de compaixão, solidariedade e empatia. Se carregamos a cultura da guerra e conflito, também carregamos a cultura da paz e colaboração.
A vida e a morte no risco evolucionário
Todavia, todo processo de crescimento e evolução traz consigo o risco, perigo e o acaso. O que também traz a sorte e a aventura. Veja o que aconteceu com os dinossauros. O nosso melhor entendimento explica que um meteoro atingiu a Terra e alterou significativamente todos os habitats dos dinossauros. Isso levou a extinção em massa e permitiu que pequenos animais mamíferos pudessem se desenvolver. Se esse evento não foi bom para os dinossauros, foi essencial para nós humanos. Imagine se os grandes dinossauros tivessem sobrevivido? Haveria chance para evolução humana? Talvez a Terra terminasse os seus dias sem a nossa existência. Dessa forma, a vida orgânica não teria a capacidade de atingir um potencial maior.
O terceiro corpo, fazendo da morte a sua vida
O terceiro corpo somente existe em uma pequena porção em cada indivíduo. Todavia, é mais como uma potência a ser desenvolvida que propriamente um corpo. Esse corpo pode ser desenvolvido individualmente. Assim, cada ser pode conseguir alcançar sua individuação. Realizar essa ação não é abandonar o primeiro e segundo corpo. De outra maneira, é aprender a se alimentar do segundo corpo, digerir e construir um novo corpo com substâncias mais sutis.
Todo corpo precisa de alimentos. O primeiro corpo se alimenta de comida, água e ar. Não podemos produzir nossa própria comida. Devemos assim nos alimentar de outros seres. Sejam esses vegetais ou animais. O nosso organismo se tornaria ainda mais complexo para produzir a própria comida como fazem as plantas. O segundo corpo também tem um alimento que são as impressões geradas dentro da cultura. Os choques internos sempre buscaram novas resoluções. Sejam pela dissolução como no caso da guerra e conflitos ou harmonia como no caso da colaboração e criatividade. Esse corpo não pertence a um único indivíduo. Porém, todos comungamos desse corpo. Então, é como se fosse um ser gigantesco, lento, dentro de um tempo próprio do coletivo. Totalmente diferente do tempo do indivíduo.
Os corpos e o tempo de cada um
O tempo do corpo coletivo está mais próximo do tempo da própria Terra que do indivíduo. Assim, a digestão das impressões acontece em um processo lento onde somos muito mais vítimas casuais dessas situações do que vítimas causais. Em outras palavras, somos vítimas aleatórias dos acidentes de percurso desse “ser gigantesco” do segundo corpo. Você não direciona esse monstro gigante. Mesmo a figura de um líder carismático não direciona esse gigante. Tais pessoas não passam de uma representação do coletivo. O sucesso de um líder carismático está em simplesmente representar a massa coletiva. O poder emana sempre do coletivo para o líder. Um líder carismático só representa essa vontade e terá poder enquanto tiver essa ressonância interna.
O alimento do terceiro corpo é a digestão das impressões, do indivíduo para si. Este indivíduo precisa aprender a guardar boa parte dessa energia para si. Aprender a transformar para desenvolver o seu próprio terceiro corpo. É este corpo que Gurdjieff diz que pode sobreviver a passagem do tempo e a morte. Porém, ele alerta que tudo tem uma duração e mesmo esse corpo precisará um dia retornar a fonte, de uma maneira ou de outra. Assim, até mesmo os deuses morrem. Todo esse processo é chamado de trogoautoegocrat. Em outras palavras, se alimentar de si mesmo.
Trogoautoegocrat, a vida morre para alimentar a vida
Esta lei é definida em Relatos de Belzebu para seu neto. Quando Sua Infinitude (Deus) percebe que sua morada, o Sol Absoluto, é vulnerável ao tempo, Ele cria o universo no qual expele o tempo. A Lei da Manutenção Recíproca (chamada por Belzebu “Trogoautoegocrat”) funciona para que o universo seja nutrido por uma troca de substâncias. Igualmente, isso protege o Sol Absoluto dos resultados destrutivos do tempo. Ou seja, o protege da mudança, decadência e morte.
O propósito fundamental para a existência dos seres humanos e dos outros seres de três cérebros do universo é servir como aparelhos através dos quais as substâncias cósmicas são transmutadas para fins de manutenção recíproca. A vida orgânica, incluindo os seres humanos, foi autorizada a se formar na Terra com o propósito específico de enviar emanações para alimentar a Lua. Do ponto de vista materialista e científico, podemos interpretar esse fenômeno como o impulso a colonização espacial. Alimentar a Lua pode ser entendido como dar vida a um corpo celeste que não possui vida orgânica inteligente.
Bennett expressa esse conceito como o mundo trazido à existência porque “’ser’’ e “tempo” são mutuamente destrutivos. Nada que está separado e fechado pode continuar a existir sem receber renovação de fora de si mesmo. Contudo, a renovação completa requer total reciprocidade. A harmonia cósmica é mantida pelo dar e receber universal de energia pela interação de diferentes classes de seres. Portanto, é essa a principal lei descrita na escala cósmica. O Raio da criação define exatamente o que cada nível “come” e é “comido”.
O raio da criação, morte e vida em um só ciclo
Dessa forma, o “Eterno Imutável” é o próprio processo de Trogoautoegocrat. Logo, tudo muda e nada muda simultaneamente. Afinal, vivemos em uma dupla existência. Como no paradoxo do navio de Teseu. Nesse paradoxo, o navio saiu para uma longa jornada. Ao longo dessa jornada parou em vários portos para reparos. Ao fim da jornada, todas as tábuas e madeira do navio já tinham sido trocadas. Nesse momento alguém pergunta: esse é o mesmo navio de Teseu ou após trocar todas sua madeira tornou-se outro navio? Algo está estático e “eterno” ao mesmo tempo que tudo está mudando. Pelo menos relativamente em relação ao tempo do outro processo. A vida orgânica parece estática para a vida do segundo corpo (cultura). Da mesma forma, a vida do segundo corpo (cultura) parece estática para o terceiro corpo (alma).
Contudo, não conhecemos as classes de criaturas acima de nós nesta escala. Gurdjieff os chamou de “anjos” e “arcanjos”. Mais tarde, o grupo de Ouspensky concordou em considerar os “anjos” como planetas e os “arcanjos” como sóis. Outros podem chamar de alienígenas, seres de outras dimensões, multiversos, metaversos, níveis de consciência, desdobramento tempo espaço e por aí vai. Simplesmente não podemos definir o que vai além de nosso entendimento nesse momento. E nosso entendimento é que existe algo além e pronto.
Portanto, a sua personalidade é estática perante uma alma que quer evoluir. Qualquer evolução precisa de um ponto de partida, de uma referência. E essa referência é sempre relativa. O Sol gira em torno da Terra tanto quanto a Terra gira em torno do Sol. E nenhum dos dois está estático em relação ao centro do universo. Então, tudo é uma questão de relatividade. O ser não pode simplesmente ser o todo e ser um indivíduo. Porém, o ser participa do todo enquanto se restringe como um corpo. Logo, esse corpo restrito torna-se um ponto fixo de referência para a sua evolução. Seja esse corpo um sol, planeta, ser orgânico ou um corpo astral. Esse é o ponto de referência que permite a evolução de seu ser.
Além da vida orgânica, vencendo a morte pela vida cibernética
Se o ser humano não sofrer grandes revezes, o que acontecerá com a humanidade em 100, 1000 ou 1 milhão de anos? Difícil ser assertivo quanto a isso. Todavia, a ficção científica é uma excelente maneira de enxergar o futuro. Com certeza teremos a inteligência artificial como parte da humanidade. Da mesma forma, teremos os robôs como novos “seres vivos” pensantes não orgânicos. Esses seres não possuem certas limitações humanas. Talvez possam superar a morte e viajar longas distâncias pelo espaço. Quem sabe até colonizar mundos. Isso nos faz até pensar se não somos já experiências de mesmos tipos de seres. Gurdjieff admitia a existência de outros planetas e seres inteligentes. A verdade é que vida é um grande mistério ainda para nós. Talvez seja um eterno grande mistério. Quanto mais se aceita isso, menos dogmático fica a sua fé. A fé é acreditar nesse próprio mistério.
A espiritualidade precisa sempre se atualizar a cada nova era de nossa existência humana. Com certeza estamos vivendo essas mudanças. Porém, elas deveriam ser muito menos esotéricas e muito mais científicas. Os grandes mestres como Jesus e Buda viveram o seu próprio tempo, com seu próprio entendimento. Os perigos e momentos eram outros. O que é eterno de todos os ensinamentos dos grandes mestres é sobre a construção do terceiro corpo. No entanto, enquanto fazemos esse trabalho, estamos habitando um primeiro corpo e um segundo corpo. Não podemos ignorar a nossa participação nesse processo. A população humana passou de 1 bilhão no século 19 e atingirá, quem sabe, mais de 20 bilhões no século 22. O perigo da ecologia é eminente.
A grande contribuição da espiritualidade é renovar o segundo corpo. Este corpo, por ser coletivo, não se comunica com o terceiro corpo sem o esforço individual de cada ser senciente. Por fim, hoje é domingo de pascoa. Como cristão, criado dentro de uma família católica, não posso deixar de refletir sobre a história de Jesus enquanto escrevo esse texto sobre se tornar o alimento para o próximo nível de ser. Talvez este seja o grande ensinamento de Cristo. Devemos aprender a nos tornar o próprio pão sacrificial. A morte que sempre reencontrará a vida.
Uma excelente semana de estudos para todos vocês e uma abençoada pascoa.
Lauro R. Borges
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(nota: trecho sobre Trogoautoegocrat usou como referência o livro de Sophia Wellbeloved, Gurdjieff The key concepts.)
Minha dúvida é, se a humanidade tem adiantado exponencialmente sua extinção depois do início da era da tecnologia. O que chegava a demorar séculos para acontecer grandes mudanças antigamente, hoje pode acontecer em poucos anos. Sera? E sendo assim segue a tendência do universo que ao invés de desacelerar sua expansão em algum momento como previsto por grandes estudiosos e cientistas, está na verdade acelerando.
Acho que toda era sempre há o risco iminente. Toda religião fala do apocalipse. O risco existe e faz parte do processo descrito pelo Eneagrama. Tudo depende do tanto de pessoas que continuem a buscar conexão com as espirais evolutivas.
Entendi, faz bem sentido, o obscuro pra mim é o sentido da palavra apocalipse pra cada religião, eu nunca acreditei num fim do mundo com data certa destruindo a terra, mas de repente pode ser que aconteça, meios tem vários né? Naturais e anti naturais, todos batendo na nossa porta….bora acelerar….??❤️
Apocalipse significa revelação em grego. Então sempre que algo é revelado, o velho morre para o novo nascer. Isso não necessariamente significa que o mundo vai acabar. O mundo sempre acaba e renasce
Toda informação que eu não tenho capacidade de trazer pra minha vida prática eu ponho na gaveta. E aquilo que é possível me trazer despertar eu uso. Achei interessante as impressões serem alimentos.
Como?
Eu vi algo em textos de quarto caminho mencionando que temos três alimentos, comida, ar e impressões, o terceiro sendo tudo que captamos do mundo através dos sentidos decodificados pela nossa mente de acordo com nosso ponto de vista já formado de tudo que conhecemos ao longo da existência, enfim….. E sendo alimento, vivemos dias sem comida, minutos se oxigênio, mas apenas segundos sem receber impressões. Também li que ao manter a presença usando os três centros, devemos nos alimentar de alimentos saudáveis, fazer exercícios de respiração e ao fazer meditação e auto observação perceber como observador que tipo de impressões estamos recebendo. Não se ouvi isso como sendo algo dito por Gurdjieff ou outro mestre. Mas acredito que a harmonia dos centros e os alimentos certos nos permitem alcançar evolução ainda que nesse plano, nessa dimensão mais densa que vivemos. Não digo que é essa a resposta da sua pergunta Gi, só quis compartilhar o que já li ou ouvi sobre isso.