Não há muitos mistérios ou segredos para despertar um ser humano adormecido. Ao longo da vida todos adormecemos como parte do processo de crescimento. Acordar é antes de mais nada lembrar de si. E para isso, sabe o que todos nós sempre precisamos? Somente de um bom choque. Mas, por estarmos profundamente adormecidos, um choque não é suficiente. É necessário um longo período de choques contínuos. E esses choques devem vir de fora. Devem vir de fora da nossa psique. Acima de tudo, o ser humano deve ser colocado em condições para receber esses choques. Esses choques podem vir de outra pessoa ou das próprias condições em que a pessoa se submete. Contudo, esses choques devem ser repetidos pelo tempo necessário para despertá-lo.
Choque é o que te sacode por dentro
Mas nada é tão simples assim. Às vezes alguém recebe um choque tão grande que ela percebe o “terror de sua situação”. Nesses casos extremos essa pessoa pode até ter forças para se manter acordada ou gerar transformações significativas em sua vida. Esses casos normalmente são quando uma pessoa percebe a presença da morte. Seja por uma doença ou por um acidente. Quando isso ocorre, e a pessoa percebe o completo descolamento de sua vida exterior com a sua vida interior, ela toma atitude suficiente em abandonar sua falsidade e em perseguir um valor mais íntimo.
Porém, no geral, serão vários processos entre despertar e retornar a adormecer. Uma pessoa pode até achar muitas vezes que ela não adormeceu. Mas isso, na grande maioria das vezes, é somente parte de sua ilusão. Por isso, precisamos de algo externo que nos mostra que estamos dormindo. Se houvesse um grande número de pessoas despertas, isso seria suficiente para nos acordar. Mas como não há, só nos resta trabalhar uns com os outros. Nessa condição, uma pessoa pode se esforçar para estar desperta e ajudar os demais. Então, vamos dizer que para acordar é necessário um despertador. Mas o problema é que logo nos acostumamos com o despertador. Rapidamente paramos de ouvir o despertador. Assim, são necessários muitos despertadores, com diferentes campainhas.
Despertadores lhe dão choques e seus amortecedores absorvem
Uma pessoa deve literalmente cercar-se de despertadores que o impediram de dormir. Mas aqui novamente há dificuldades. Os despertadores devem estar com corda ou programados. E o simples fato de lembrar sobre isso já requer estar acordado com frequência. Ainda pior, o ser humano logo se acostuma com todos os tipos de despertadores. Depois de um certo tempo, esses despertadores até ajudam a embalar seu sono. Portanto, os alarmes devem ser constantemente alterados. Novos alarmes devem ser continuamente inventados.
Dessa forma, há pouca chance de uma pessoa fazer todo o trabalho de inventar, dar corda e mudar todos esses relógios sozinho, sem ajuda externa. É muito mais provável que ele comece este trabalho e em pouco tempo adormeça. Outrossim, que durante o sono ele sonhe que está inventando despertadores, dando corda e trocando todos eles. Tudo isso, para simplesmente dormir ainda mais profundo. Portanto, para despertar, é necessária uma combinação de esforços. É essencial que :
- haja alguém para acordar o ser humano adormecido.
- alguém cuide do ser humano que o acorda.
- ter despertadores,
- inventar continuamente novos despertadores.
A força de um trabalho em grupo é um potente choque
Logo, para obter resultados em uma empreitada como essa, a única maneira é que um certo número de pessoas junte seus esforços.
“Um ser humano sozinho não pode fazer nada. Um ser humano sozinho pode facilmente enganar a si mesmo e tomar por despertar o que é simplesmente um novo sonho. Se um certo número de pessoas decidiu trabalhar em conjunto contra o sono, eles acordarão uns aos outros, e mesmo que a maioria volte a dormir, pode ser suficiente para um acordar e para ele acordar os outros. Da mesma forma, eles compartilharão seus vários métodos de despertar. Todos juntos podem ser uma grande ajuda um para o outro, enquanto sem ajuda mútua cada um deles sozinho não alcançaria nada. Um ser humano que deseja despertar deve procurar outras pessoas que também desejam despertar e trabalhar junto com elas. Mas mesmo isso não é suficiente, porque tal empreendimento requer um conhecimento que um ser humano comum não possui. O trabalho deve ser organizado e dirigido de acordo com esse conhecimento. Sem essas condições, os esforços feitos são mais do que prováveis de serem inúteis ou extraviados. “
Jean Vaysse
As pessoas podem inventar todos os tipos de métodos e meios. Podem até fazer grandes sacrifícios e até torturar-se. Porém, todos esses esforços serão inúteis se não forem realizados “de uma certa maneira”. Afinal, nem tudo leva à transformação. Não é todo esforço que leva aos resultados esperados. Além disso, temos um tempo apropriado para cada tipo de desenvolvimento. Às vezes o desenvolvimento de um centro está mais propício que de outro. Como muitas vezes descrito em várias filosofias, há o tempo de semear, tempo de fazer crescer e o tempo de colher.
Até mesmo a fase da vida de uma pessoa altera essas condições. Uma pessoa muito jovem que desperte não terá muito conteúdo para transformação. Gurdjieff alerta isso em seu livro Relatos de Belzebu para seu neto, quando Belzebu diz para seu neto Hassein que ele não deve se ater excessivamente em certos detalhes ou mesmo preocupações muito profundas e sim dedicar mais a sua vida material. O desenvolvimento não é um progresso contínuo retilíneo. Algo que alguém começa hoje e termina com data marcada. Cada fase tem suas próprias motivações e desafios.
Nem todo esforço vale a pena
Mas há dificuldades ainda maiores para os intelectuais especialmente. Essas pessoas tendem a gostar de desenvolver-se por iniciativa própria. Seguem o que pensam ou acreditam ser melhor para si. Muitos são capazes de grandes esforços e grandes sacrifícios. Contudo, não conseguem entender que todos esses sacrifícios pretendidos correspondentes às suas ideias pessoais, na maioria das vezes, não têm nada a ver com o que é necessário para o despertar que procuram. Tudo isso torna difícil para essas pessoas admitir que todos os seus sacrifícios serão inúteis. Para essas pessoas é primordial entender que o primeiro esforço e sacrifício necessários devem ser renunciar às suas ideias e crenças pessoais em favor da obediência a outros que possuem experiências verdadeiras.
Este tipo de trabalho deve ser organizado a partir do conhecimento dos problemas e dos objetivos, das regras e dos métodos. É muito mais fácil em um grupo encontrar um somatório de experiências que ajudem a direcionar e, principalmente, mostrar quando estamos desviando de nossa trajetória pela auto hipnose de nossa imaginação. Assim, o ser humano que quer ficar sozinho corre o risco de se isolar. Para o ser humano que deseja despertar e começou a estudar a si mesmo, seu primeiro objetivo deve ser encontrar um grupo.
O grupo deve saber trabalhar com honestidade
O auto estudo pode ser levado a um resultado bem-sucedido apenas em um grupo adequadamente organizado. Há muito mais chance de um grupo, com as intenções e motivações corretas, encontrar os meios de ajudar um ao outro do que buscar esse caminho sozinho. Isso não descarta a realização de um trabalho pessoal separado. Isso tanto individualmente quanto com a ajuda de um terapeuta. Devemos lembrar que um ser humano sozinho não pode ver a si mesmo. Mas um certo número de pessoas que se reúnem para esse fim se ajudam, mesmo involuntariamente. É característico da natureza humana sempre ver os defeitos dos outros com mais facilidade do que os próprios. E isso acontece muito “espontaneamente”. Mas logo a pessoa aprende que tem em si mesmo todas as características e defeitos que vê nos outros. A diferença é apenas em seu grau de manifestação.
Há muitas coisas que não vemos em nós mesmos. Por outro lado, é muito mais fácil observar isso nas outras pessoas. A grande verdade é que os outros membros do grupo agem como uma espécie de espelho no qual podemos ver a nós mesmos. Jung chama isso de sombra e projeção. E um grupo que se compromete ao trabalho consegue tolerar essas manifestações de sombra e projeção. Contudo, precisa ter uma atitude interior especial para se ver nas características, defeitos e faltas de seus companheiros e não apenas ver suas próprias características e falhas. É necessário uma vigilância, uma atenção de uma direção e qualidade particular. Isso requer grande honestidade e, acima de tudo, grande sinceridade para consigo mesmo.
Uma pessoa só pode falar honestamente sobre o que ele mesmo experimentou. A sinceridade total e a vontade de se colocar em questão sempre devem ser respeitadas por cada membro do grupo. Se isso não ocorrer, o trabalho não é possível. Assim, no trabalho de auto estudo, cada aluno começa a acumular em si mesmo o material resultante de suas observações. Aqui, novamente, o trabalho em grupo é indispensável. Vinte pessoas terão vinte vezes mais material. A maioria dos quais pode ser usada por todos. A troca de observações e posteriormente a partilha do seu entendimento é uma das finalidades da existência de grupos de trabalho.
Para cada ação de um choque haverá uma reação da personalidade
Todavia, cada estudante deve lembrar de não se identificar e que somos compostos de duas partes. Uma parte é aquela que quer despertar. Mas, há outra parte que não tem nenhum desejo de despertar. Essa é sua personalidade. E ela tem que ser trazida para o trabalho a despeito de si, utilizando-se ao mesmo tempo de força e astúcia. Um grupo geralmente é um pacto realizado entre os verdadeiros eus de várias pessoas para se engajar em uma luta comum contra suas falsas personalidades. O eu real de cada indivíduo é impotente contra sua própria personalidade. Ele está adormecido. Portanto, a personalidade está no controle da situação. Mas se vinte “eus verdadeiros” se unirem para lutar contra cada uma de suas personalidades, eles podem se tornar mais fortes do que elas. Haverá a possibilidade de perturbar seu domínio e impedir que os “outros eus” durmam tão pacificamente.
No entanto, esse processo de provocações de sombra e projeções podem minar a confiança de um grupo. As pessoas começam a reclamar de seus colegas. Acham que alguns não se dedicam o suficiente e que deveriam ser expulsos. Ainda encontram seus “favoritos” e os elegem como agradáveis. Ao mesmo tempo que sentem antipatia pelos outros. Se o estudante não entender que tudo isso é sobre ele, e somente sobre ele, não há progresso. Logo, essa pessoa irá buscar outro grupo “mais perfeito” e nunca entenderá que, na verdade, o que ela recebeu foi um choque que dizia muito sobre ela mesmo. Nada compreendeu sobre sua mecanicidade e sobre si mesmo. Infelizmente, isso é mais comum do que se imagina. A auto-observação por si só não é suficiente para o despertar. É apenas um passo preliminar que requer um certo grau de despertar. O ser humano passivo mal emerge do sono e volta a cair novamente nele.
Se você não lembra se si, de nada adianta os choques
É apenas começando a “lembrar de si ” que um ser humano realmente começa a despertar. Isto é: ao tentar redescobrir, coletar e viver o que ele sente ser mais verdadeiramente ele mesmo. O que realmente está por trás de todos esses personagens. Este esforço traz uma “impressão de si” com um gosto especial que não pode ser confundido quando um ser humano o experimenta. Isso torna a pessoa menos escrava de sua personalidade. Então, devemos entender que apesar do grande segredo para o despertar ser o choque, ainda assim é necessário ter algo interior que receba esse choque. Algo que irá colher essas impressões, se alimentar delas, aprender a digerir e nutrir de si.
A experiência pessoal é uma experiência da consciência. Assim, só tem sentido quando é vivida e no momento em que é vivida. Além do mais, só faz sentido para o ser humano que a vive. Se apenas a máquina funciona, se não há ninguém presente, não há trabalho. Mesmo a simples auto-observação não é possível sem um certo grau de auto-recordação. A lembrança de si mesmo, e o conhecimento relativo de si irá inicialmente mostrar que as coisas não são feitas por um “eu” e nem conta com a presença de um “eu”. É apenas começando a “lembrar de si” que um ser humano pode realmente despertar. É somente com um despertar real e suficientemente longo que o ser humano se torna presente a si mesmo. E é somente com “presença para si” que um ser humano começa a viver como um ser humano.
O maior obstáculo sempre está dentro de nós
O conhecimento sobre a operação de sua máquina é o começo de tudo. Entender que vivemos em cinco centros inferiores, que pouco se coordenam entre si. Ver que não há um “eu” único em comando. Perceber que há uma multitude de “eus” que se disfarçam sob a capa de uma falsa personalidade. Isso permite entender o que acontece no outro também acontece em mim. A diferença é a intensidade e manifestação dada a essas reações. Isso deve ir além de uma simples compreensão intelectual. Isso deve ser compreendido, cada vez mais, com maior desejo, vontade e profundidade vinda do ser. Somente assim alguém estará preparado para receber os choques e colher suas impressões de forma adequada. Com isso, aprenderá cada vez mais sobre si e automaticamente sobre os outros. Por consequência, também sobre tudo. Para tanto, devemos continuamente lembrar de si mesmo em um intenso esforço e desejo físico, emocional e mental.
Esse é um processo de construção de uma pedra sobre outra pedra. É um contínuo e longo processo de auto aperfeiçoamento. Um processo penoso com muitos resultados e também muitos revezes. É um processo longo de sedimentação onde mais importa a maneira que se faz o caminho do que o próprio caminho. É também, antes de tudo, um processo psicológico. E não adianta querer atingir o paraíso se não realizou sua reforma interior.
Lauro Borges
Esse artigo faz parte de uma série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.