Amortecedores, imagem e imaginação – Parte 3

A identificação e a imaginação, juntos com os amortecedores psicológicos, fornecem uma potente estrutura para nos manter em um profundo estado de sonambulismo. Ter consciência da existência desses mecanismos já é algo libertador. No entanto, leva um bom tempo para poder observar como esses mecanismos atuam em conjunto como obstáculos para o despertar da consciência. Ainda mais, a forma intrínseca desse funcionamento faz com que seja praticamente impossível uma pessoa despertar por si mesmo. Com isso, a pior de todas as fantasias é crer que alguém pode fazer algo sozinho.

Amortecedores, imagem e identificação

O ser humano está sempre a esquecer de si. No entanto, nosso cérebro não aceita buracos na memória. Assim, tudo que não é lembrado como realmente aconteceu será então imaginado. A imaginação é o maior alimento para os amortecedores psicológicos. Afinal, é mais doce e suave viver a imaginar sua própria fantasia que enfrentar a realidade. Mesmo que essa fantasia seja triste, melancólica e depressiva. Afinal, o que mais fazemos em nossas vidas é manter-se identificados com nossos padrões e complexos. Tudo em nome de um “auto-amor” e uma eterna auto-pena (comiseração, desgosto, martírio, clemência, compadecimento, compaixão, condoimento e condolência por si). Claro, todos nós nos achamos especiais. Até o nosso sofrimento é exclusivo, único e especial. E o que mais amamos acima de tudo é o nosso sofrimento. Contudo, a razão para isso vem por acreditar que tudo que lhe ocorre é sua culpa e responsabilidade. Em suma, podemos dizer que existem três etapas contínuas que sempre nos levam ao sonambulismo: 

  1. o esquecimento em relação ao seu eu real, 
  2. a fabricação automática de percepções pelo uso indevido de construções imaginativas e 
  3. a constante identificação de si mesmo com tudo o que lhe acontece 

Como consequência do percorrer contínuo dessas etapas, algo surge e toma o lugar do eu real. Assim, esse eu real passa a ser cada vez mais ausente e adormece. No seu lugar desenvolve-se uma personalidade superficial com muitas facetas e uma caótica interconexão entre elas. Interconexões essas muitas vezes contraditórias entre si ou voltadas para diferentes direções. Estes são os diferentes “eus”. Cada um dos quais permite enfrentar uma das várias situações típicas de sua vida. No entanto, acreditamos firmemente em cada uma delas quando aparecem. E o que impede o colapso total desse sistema são os amortecedores. Essa fantasia leva a criação da existência de uma aparente unidade.  O que é reforçado ainda pela identidade com o corpo físico e pela percepção linear da passagem do tempo. Afinal, me olho no espelho e todos me chamam pelo meu mesmo nome. Logo, eu devo ser esse indivíduo. Sim, você é um indivíduo, porém, a individualidade desse indivíduo vem como fruto de uma unificação psíquica inexistente em sua forma natural.

A ilusão de acreditar no que não se tem

Então, todos acreditam serem dotados de total poderes de unidade e consciência. Na verdade, para o ser humano como ele é, todos esses poderes são ilusórios. O que dá ao ser humano a ilusão de sua unidade ou de sua integridade são: 

  • a sensação que ele tem de seu corpo físico que parece sempre permanecer o mesmo, 
  • seu nome e imagem, pelo qual ele é “conhecido” e que em geral não muda apesar da sucessão de diferentes personagens. 
  • mecanismos e hábitos implantados pela educação ou adquiridos por imitação 
  • o sistema de amortecedores que neutralizam nele todo senso de autocontradição. 
  • a identificação com a imagem criada do personagem, identificação com sua história de glória, dor e sofrimento. Em outras palavras, sua identificação com o seu próprio mito

Assim, o ser humano vai sempre experimentando as mesmas sensações físicas, ouvindo chamar pelo mesmo nome, encontrando em si os mesmos hábitos e inclinações que sempre conheceu. Por não sentir suas contradições internas e nunca questionar nada, o ser humano imagina que é sempre o mesmo. Na realidade, além da aparência externa, nada é constante em sua vida. E se observar atentamente, notará que até suas expressões e posturas nunca são as mesmas o tempo todo.  

Mas isso não é tudo. Suas interpretações e ilusões pessoais são sempre zelosamente defendidas. Há sempre em suas manifestações externas e internas o sentimento de autojustificação necessário à imagem que ele construiu. A menor afronta é sentida como um revés ou uma perda. Seu maior vício chama-se  amor-próprio. O ser humano é fraco. Ele é tão fraco quanto uma criança e em seu próprio ser, em sua essência.

Sinceridade só existe quando passa pelos amortecedores

Essa verdade só é acessada nos momentos de sinceridade. Mas para piorar, sempre se acha responsável por sentir isso. Em vez de reconhecer isso e empreender os esforços necessários que lhe criam uma saída, esse prefere defender, contra tudo e contra todos, essa imagem que ele tem de si mesmo e seu “ideal” de “o que ele deveria ser”. Contudo, parte disso se deve ao fato dele não saber como ou a quem pedir ajuda. Soma-se ainda o fato de sua imensa preguiça em fazer algo a respeito disso, em agir sobre o que é certo.   

Em geral, nossas reações não são diferentes das de uma criança que defende seu brinquedo. Há um apego sem sentido a uma imagem, que é em grande parte falaciosa e em nome da qual surgem todas as suas reações. Isso é a base fundamental de seu amor-próprio. O que de longe é um dos maiores obstáculos para que alguém veja o que ele realmente é. Defender essa imagem de si mesmo é fundamental na relação usual do ser humano com seu semelhante. Contudo, tomar consciência disso pode gerar ainda mais confusão. Essa defesa é importante até um determinado nível e dentro de uma ação na vida. Você tem de acreditar em si pela manhã quando acorda e vai trabalhar.  A correta compreensão disso é o que Gurdjieff chama de ser um verdadeiro ator. Nada tem a ver com ser falso e sim com ser adequado às situações exteriores. 

Consideração interior, uma excelente maneira de desperdiçar sua energia

Todavia, as pessoas são geralmente governadas pela “consideração interior”. Uma condição em que um ser humano está principalmente preocupado com o que as pessoas pensam sobre ele. O que ele deve fazer para ser reconhecido e apreciado de acordo com a imagem de si mesmo que deseja transparecer. Essa imagem é geralmente “idealizada” e um tanto exagerada. Logo, ele sempre considera que não é apreciado o suficiente. Sempre pensa que não lhe é dado o seu devido lugar, que as pessoas não são educadas o suficiente com ele, que ele não é apreciado em seu verdadeiro valor. A forma como as pessoas o olham, o que pensam dele, assume uma enorme importância aos seus olhos. Tudo isso o preocupa demasiadamente. 

Assim, tempo e energia são desperdiçados em conjecturas e especulações. Se ele se sente um pouco incompreendido, torna-se desconfiado e até hostil em relação aos outros. Com isso, desenvolve uma atitude negativa que só agrava sua situação. 

“Mas as coisas podem ir ainda mais longe: um ser humano pode se sentir frustrado pelo ambiente, pela sociedade em que vive, pelos eventos que ocorrem, até mesmo pelo clima. Tudo o que ele não gosta lhe parece uma afronta e parece injusto, ilegítimo ou errado. Todo mundo está errado, até o clima é o culpado, só ele está certo. Isso não quer dizer que não há nada para um ser humano defender na vida. Mas o que ele realmente deve defender (a manifestação de sua própria natureza e de seu próprio ser em uma forma que lhe pertence exclusivamente e sob o controle do amor-próprio real) só aparece com o despertar e o desenvolvimento de seu eu superior. E tudo isso não tem nada a ver com seus muitos eus ou sua auto-imagem”

Jean Vaysse

Sem os amortecedores você estaria diante do “terror de sua situação”

Então, o principal mecanismo que nos impede de ver todas essas contradições são os amortecedores. Sua função é igual aos amortecedores presentes nas suspensões dos automóveis. Os amortecedores servem para “suavizar” a transmissão das irregularidades do chão (realidade) para dentro da cabine de passageiros. Tudo isso para dar o máximo de conforto interior. Todavia, eles são criados, não pela natureza, mas pelo próprio ser humano, embora involuntariamente. A causa de seu aparecimento é a existência no ser humano de muitas contradições de opiniões, sentimentos, simpatias, palavras e ações. 

Se um ser humano ao longo de toda a sua vida sentisse todas as contradições que estão dentro dele, ele não poderia viver e agir tão calmamente como vive e age agora. Ele teria atrito constante, inquietação constante. Ele tomaria consciência do “terror de sua situação” interior. Mas isso seria insuportável para ele. Afinal, ele descobriria também sua incapacidade de fazer qualquer coisa em relação a isso. 

Portanto, os amortecedores embalam o ser humano para dormir. Dão-lhe a sensação agradável e pacífica de que tudo vai ficar bem. De que não existem contradições e que ele pode dormir em paz.  Os amortecedores são dispositivos por meio dos quais um ser humano pode estar sempre certo.  Eles ajudam o ser humano a não sentir sua consciência e lhe tranquiliza dentro de seu amor-próprio. Esse é o processo que Gurdjieff chama de auto-calma. Desenvolver-se exige aprender a estar diante de suas tensões. Tensões e atritos são bênçãos. Sem isso não há energia para a transformação. São os choques que precisamos receber a todos os momentos. Ao mesmo tempo, não podemos remover totalmente os amortecedores sem que haja uma preparação adequada e um longo trabalho executado.

Choques, o que faz você cair na real

Contudo, quando uma pessoa recebe um choque muito forte, poderá repentinamente perceber as seguintes coisas:

  1. Ela não tem verdadeiramente nenhuma das qualidades das quais se orgulha; 
  2. Ela se vê como um ser dual, o que lhe coloca em constante contradição; 
  3. Ela poderá notar que por trás do ser humano comum dorme um eu real que contém a possibilidade dessas qualidades e que o choque despertou por um instante.

Por um instante, essa pessoa vê que um personagem superficial, dotado de poderes ilusórios, está respondendo em seu lugar a tudo na vida. Poderá notar uma personalidade artificial que insiste em estar no comando. Nesses vislumbres, ele pode entender que precisa se tornar verdadeiramente ele mesmo. Ainda mais, que para atingir o despertar e o crescimento do ser terá de desejar isso constantemente, apesar de isso não ser suficiente. E ele pode ver que essa personalidade, esse personagem em que ele acreditava tão firmemente, que ocupa todo o espaço e sob cuja influência ele vive, é o principal obstáculo para o despertar do eu real.  

Assim, a cada momento em que vê que está adormecido, ele deve a todo custo acordar. É a única saída para se tornar ele mesmo. Se for honesto, sente em si mesmo a necessidade de desalojar essa personalidade que se interpõe em seu caminho. Portanto, ele começará a lutar contra ela.  A partir de então, uma nova escala de valores aparecerá para ele. Tudo o que o ajuda a despertar é bom para ele. Assim como tudo o que o impede é mau. O único pecado real para tal ser humano vem a ser o que impede seu ser interior de despertar.  

A pior das ilusões: “eu não preciso de ajuda”

Mas o ser humano não tem poder sobre esses momentos de autoconsciência.  Eles aparecem e desaparecem sob a influência de condições externas, associações acidentais, choques, memórias e emoções. Infelizmente, nenhuma dessas situações depende dele.  No entanto, se ele aprender os métodos corretos, se aprender a dirigir seus esforços adequadamente poderá um dia adquirir controle sobre tais momentos. E como resultado, tornar-se consciente de si mesmo.  Isso tornaria possível para ele dominar esses momentos fugazes de consciência. Evocá-los com mais frequência e conservá-los por mais tempo. quem sabe até torná-los permanentes.  Mas ele não pode fazer isso por si mesmo. Um desenvolvimento desta ordem implica conhecimento. Também em uso de meios que o ser humano como ele não possui e nem sabe como colocar em prática.  

Quem desistiu da ilusão de acreditar em suas qualidades e poderes deu assim um enorme passo em direção à sua liberdade. Desistir da crença de que possuímos aquilo que deveria pertencer a nós mesmos não é uma decisão fácil. No entanto, devemos desistir de outra ilusão: a de que se pode obter qualquer coisa neste reino por si mesmo. Talvez essa seja a maior doença da cultura global neo-liberal. Quem verdadeiramente emprega esforços para acordar, logo percebe que desejar não é suficiente. Com isso, volta a dormir e não acorda novamente. Uma pessoa deve passar por esse sofrimento e experimentar plenamente a dificuldade de despertar. E isso deve ser um teste a sua resiliência e força de vontade. Sua vontade, apesar de ser insuficiente, é o que levará a entender que será necessário um trabalho longo e árduo. Um trabalho que é impossível de ser feito sozinho.

Lauro Borges

Esse artigo faz parte de uma série sobre trechos, notas e comentários sobre o livro Toward Awakening: An Approach to the Teaching Left By Gurdjieff” de Jean Vaysse.

10 comentários em “Amortecedores, imagem e imaginação – Parte 3”

  1. Em relação a amortecedores lembra que nós temos um cérebro físico e aqui na terra tem ciência e tecnologia. Na psiquiatria tem um estudo chamado mecanismos de defesa do ego. Não seria mais prático primeiro entender o cérebro físico e depois se ocupar da parte do misticismo esotérico de Gurdieff? Bju Si espero ter ajudado.

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    • Isso me fez pensar na seguinte resposta… A estrutura de um mito não é necessariamente estar correta do ponto científico mas sim motivar principalmente o emocional a agir de forma correta.

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  2. Dito isso no comentário anterior eu perguntaria para mim mesma sobre meu próprio sofrimento. Como são meus amortecedores? Observaria com amor e compaixão meu sofrimento meus amortecedores e esse estado de amor de graça de observação de atenção de compaixão de não julgamento vai se tornando cada vez mais forte cada vez que tenho disciplina de alimentar isso até que o amor que é minha essência que é a essência das coisas possa absorver e eu possa agir de uma forma diferente leve cada dia melhor. Com o tempo ao observar e absorver no amor uma questão uma única questão resolve várias.

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  3. Oi Simone. Conhecimento nunca é demais…ainda assim em se tratando de conhecimento esotérico eu sempre que tenho uma dúvida faço a seguinte pergunta pra mim: essa resposta é cereja do bolo ou me ajuda a despertar cada vez mais imediatamente? A segunda pergunta que faço é como essa dúvida pode ser aplicada diretamente no meu despertar agora imediatamente no nível que tenho agora.

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    • Muito boa resposta. Realmente devemos ter esse cuidado, pois, é fácil perder o propósito do trabalho enquanto se fica filosofando em questões que estão muito além do nosso alcance.

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  4. Eu tenho dúvida do porquê o ser humano criou inconscientemente amortecedores usando a imaginação (concedida por Deus) para adormecer e se auto enganar, inclusive tendo sofrimento? Que realidade poderia ser mais dura do que esse sofrimento ilusório da auto consideração?

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    • Cabe aqui pelo menos duas abordagens para essa resposta. A primeira é o que Gurdjieff diz sobre o ser humano ter parado de realizar o trabalho sobre si. Dessa maneira ele não consegue direcionar essa energia para o seu desenvolvimento. Por ter parado de trabalhar sobre si é necessário ter os amortecedores. Caso contrário não consegue viver com as contradições.

      Outra explicação é que somos animais em evolução. O córtex frontal é ainda uma estrutura relativamente nova nesse animal. Assim, seu cérebro se desenvolve de uma maneira que leva a essa condição.

      A humanidade como a conhecemos é ainda muito nova para poder dizer se o cérebro ainda evoluirá para resolver essa questão ou se a consciência humana evoluirá de maneira a ter mais pessoas se desenvolvendo.

      Ainda poderia dizer que Gurdjieff chama os amortecedores de kundabuffer. Para ele esses amortecedores são o que nos mantém presos a Terra. Afinal a vida orgânica não tem outro objetivo além de servir a outros propósitos cósmicos. A evolução pessoal vem do esforço individual e requer o pagamento de seus esforços.

      Mas acho que vale mais compreender como isso opera em nossas vidas que compreender certas perguntas metafísicas.

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      • Eu tenho uma impressão que a nossa fase como humanos também possa ser uma daquelas transições em que por exemplo os homens começaram andar em pé, deve ter sido muito difícil e talvez tenha exigido muito de algumas gerações que com seus esforços acabaram ajudando as próximas a se desenvolver.

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      • No caso do que Gurdjieff dizia também tem muito sentido racionalmente falando porque pelo que temos registros históricos a humanidade não parece ter seguido uma evolução nesse sentido, iludido com a evolução da ciência e tecnologia.

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